NOTÍCIA
Em entrevista, Priscila Fonseca da Cruz, do Todos Pela Educação, deixa claro que o tema mais urgente é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
Publicado em 29/03/2020
Se o que está em jogo é para o bem da educação brasileira, pode esquecer: a administradora, advogada e educadora Priscila Fonseca da Cruz jamais deixará o gramado antes do apito final. Mestre em Administração Pública pela Harvard Kennedy School of Government, graduada em administração de empresas pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) e em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Priscila acostumou-se a encarar as bolas divididas no setor – que, sabe-se, estão longe de serem poucas – na luta pela oferta de ensino de qualidade, sobretudo, às novas gerações de brasileiros mais carentes. Foi uma das fundadoras, em 2002, do Instituto Faça Parte, que coordenou até 2005, e do movimento Todos Pela Educação, do qual é presidente-executiva. Recebeu em 2012 os prêmios Jovem Liderança na Educação, promovido pelo Grupo Estado, em 2012, e, pelo Todos, o Darcy Ribeiro, da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados.
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Nos últimos dois anos, dedicou boa parte de seus esforços aos debates sobre a principal pauta da educação brasileira em 2020: a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb, o sistema que equilibra os gastos públicos por aluno nas escolas públicas do país. Nesta entrevista, Priscila detalha os avanços a serem incluídos na nova versão do mecanismo, que se tornará permanente na Constituição, e mostra todo o seu descontentamento com a atual gestão do MEC e o ministro da pasta, Abraham Weintraub. “Não é possível que os brasileiros tenham hoje o pior ministro da história da educação brasileira – repito: o pior ministro da história da educação brasileira – e não subam a um tom de protesto compatível com a tarefa que o momento nos impõe”, dispara. “Isso é ainda mais doloroso em grande parte da comunidade educacional”. Acompanhe:
Nunca é demais: explique o que é e como funciona o Fundeb.
É uma cesta contábil de fundos de impostos estaduais e municipais das 27 unidades federativas: os 26 estados e o Distrito Federal. O fundo de Minas Gerais, por exemplo, é alimentado por tributos de todos os municípios mineiros e do governo do estado e assim por diante. Funciona como um grande cofre. Todo o dinheiro coletado é destinado à valorização profissional e salarial de professores e ao funcionamento e desenvolvimento da educação básica nos estados e municípios, que por lei possuem essas obrigações. Os recursos coletados são redistribuídos para os estados e municípios brasileiros de acordo com o número de matrículas feitas. Com ponderações: o fundamental recebe menos por aluno do que o médio, o fundamental integral mais do que o de meio turno e por aí vai. Como o cálculo é feito por matrícula, o governo federal define um valor mínimo de investimento por aluno no país para que as redes funcionem e o aprendizado se estabeleça. Os estados que não conseguem cobrir esse valor mínimo por aluno recebem um complemento do governo federal na redistribuição dos recursos.
A Câmara trabalha com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que inclui, entre outras coisas, a transformação do Fundeb em um mecanismo permanente. Como avalia esse texto?
Estamos na reta final para a votação da PEC. Em seguida, teremos a regulamentação. Foram anos de pesquisa, discussão, modelagens, simulações e ações no Congresso Nacional. Nós, do Todos Pela Educação, começamos a trabalhar uma proposta em 2017. Dezenas de educadores e instituições fizeram trabalhos semelhantes. Do início das discussões até hoje, houve um avanço considerável – e o texto relatado reflete isso. Propõe uma redistribuição mais direta e eficiente dos recursos.
O Fundeb atual, na previsão legal, será extinto em dezembro de 2020. O texto da PEC determina que ele se torne permanente na Constituição. Um ganho histórico. Além disso, prevê que a participação do governo federal caminhe progressivamente, em seis anos, dos atuais dez por cento para 20%.
Haverá perdas?
Talvez em alguns casos pontuais, mas o modelo tem condição de neutralizá-las com o tempo. Em qualquer redistribuição há quem deixe de ganhar o que recebia antes para que outros recebam mais. Quando o que está em questão são recursos financeiros, dinheiro, a negociação fica sempre mais difícil, porque todo estado ou município, mesmo de regiões mais ricas, apresenta algum nível de dificuldade para financiar a educação. Nesse contexto, uma proposta mais redistributiva é um avanço enorme e inegável. São estados e municípios mais ricos entendendo que precisam abrir mão de parte dos recursos recebidos até então em benefício de outros mais carentes.
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O que vai melhorar?
Essa pergunta só poderá ser totalmente respondida daqui a algum tempo, na análise dos primeiros anos com o novo modelo. Mas há perspectivas animadoras. Além da redistribuição mais justa, haverá maior aporte da União, com parte dos recursos, ao que tudo indica 2,5% do complemento da União, tendo como critério de distribuição os resultados no aprendizado. O direcionamento baseado em desempenho vem produzindo bons resultados regionais. A experiência mais elogiada é a do Ceará. Mas agora, pela primeira vez, teremos isso, no Fundeb, em escala muito maior, para todo o país.
O que funcionou bem até agora? Por quê?
Antes de tudo é preciso ter em mente que o Fundeb foi uma das decisões mais acertadas na história da gestão educacional brasileira. É a política de educação do país mais estudada no exterior, efetivamente um case mundial. É também, sem dúvida, a pauta mais importante do setor em 2020. O Fundeb foi regulamentado por medida provisória em 28 de dezembro de 2006 e começou a ser implantado em 1º de janeiro do ano seguinte. Para se ter ideia, naquele momento a diferença entre os investimentos por aluno da rede pública entre a cidade brasileira com a menor e a maior média era de absurdos e inaceitáveis 14.800%. Hoje, beira os 500%. Ainda é muito, precisamos continuar a combater a distância. Mas, ao reduzir brutalmente o abismo, o Fundeb destruiu a lógica da obrigatoriedade de o aluno estar em um município rico para ter uma educação minimamente aceitável. Se os recursos são bem aproveitados ou não é outro trabalho, mas a redução do intervalo inacreditável em grande escala representa um ganho quase revolucionário. Com a previsão de redistribuição mais arrojada, uma vitória incluída no texto da PEC, essa diferença de 500% cairá ainda mais.
Para quanto e quando?
Vai depender do que for aprovado da PEC sem reduções. Representantes do governo federal admitiram nas últimas horas que tentam negociar no Congresso um percentual intermediário entre 15% e 20% para o complemento da União. Vamos torcer para que passe a maior parcela possível. Depois disso, aprovado o máximo possível agora, a redução da diferença poderá cair ainda mais rapidamente se as mudanças atuais produzirem resultados na ponta e os governantes, num futuro não muito distante, espero, se dispuserem a aumentar ainda mais os percentuais do aporte federal.
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Chegou-se a falar em 40% de complemento para a União, que caiu para 20% e, dependendo das negociações, pode ficar em algo entre 15% e 20%.
Alguns analistas se equivocaram ao analisar esse ponto. O Todos não apresentou oficialmente uma proposta de 40%. Mesmo os grupos e educadores que defendiam publicamente esse percentual tinham consciência de que ele não passaria de um índice para início de negociação. Então, considerar pouco o que está para ser aprovado tendo como parâmetro os tais 40% é um erro. Não foi, de jeito nenhum, uma ‘vitória do governo’, como alguns escreveram.
Como o governo Bolsonaro se comportou até agora na discussão?
Parecia disposto a encontrar qualquer caminho que mantivesse os atuais dez por cento. Não houve uma participação relevante e comprometida do MEC em nenhum momento do processo. No Ministério da Economia, nunca se escondeu, inclusive, a intenção de evitar o Fundeb permanente na Constituição. Com o avanço dos debates, em alguns momentos passaram a defender, no máximo, os 10% atuais. O restante foi conquista.
Qual modelo de Fundeb o Todos defende? O que ficou faltando?
O primeiro e mais importante ponto da nossa proposta é o Valor Aluno/Aluno Total, o VAAT. A lógica atual de distribuição do Fundeb é estadual. Os recursos são destinados a estados com valor por aluno médio do Fundeb mais baixo, hoje todos nas regiões Norte e Nordeste. Na maioria dos anos, entre sete e nove estados recebem a complementação federal. O problema é que, no modelo atual, municípios carentes de estados ricos ou menos pobres não recebem verba do aporte da União. Por outro lado, cidades em situação fiscal razoável localizadas em estados menos são incluídas no complemento. É o caso, por exemplo, de cidades do Norte e Nordeste com exploração de minério, que gera forte arrecadação de impostos.
Como sair dessa sinuca?
Defendemos que toda a situação fiscal do estado e do município seja considerada. A lógica de distribuição deve ser por ente, ou seja, por estados e municípios com valor por aluno total mais baixo. Um exemplo gritante é da suprema maioria dos municípios do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, região pobre na divisa com a Bahia. Apesar de receber mais recursos da redistribuição do governo mineiro, essas cidades não entram na lista da complementação do governo federal. Apresentam índices de pobreza tão grandes quanto o dos municípios carentes do Norte/Nordeste. Nossos levantamentos mostram que, embora em menor escala ou em situações pontuais, há casos semelhantes no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e até mesmo São Paulo. Com a nossa proposta, o VAAT, incluída na PEC, essas regiões e municípios passariam a receber a complementação.
Qual é a crítica, então?
O problema é que o VAAT foi acolhido parcialmente, e não totalmente. A complementação federal será, até o final de 2020, de 10% no modelo de distribuição antigo, sem VAAT, como prevê a lei em vigor. Pela nova PEC, essa complementação, em seu percentual inicial e na progressão até atingir os 20%, deverá ser distribuída assim: 10% do jeito atual, 7,5% pelo critério do VAAT e os 2,5% restantes atrelados a resultado. O Todos defende que o VAAT seja aplicado não só nos 7,5%, mas em toda a complementação federal, em qualquer período. Ou, pelo menos, nos 17,5% colocados fora do critério de desempenho. Municípios mais pobres, estejam eles onde estiverem, atendem, em regra, alunos mais pobres. Alunos mais pobres, estejam eles onde estiverem, necessitam, em regra, de mais recursos. O sentido de existência do fundo é investir mais – e cada vez mais – na ponta, ou seja, em quem tem menos e precisa de mais. Nesse sentido, o VAAT é, infinitamente, um modelo de distribuição mais equitativo, justo e cirúrgico.
O governo Bolsonaro acenou com a inclusão do Salário Educação, recurso enviado há anos pela União a municípios, estados e Distrito Federal, na soma do que será o total da complementação federal. Esse dinheiro obviamente não é novo. Seria uma derrota?
Sempre defenderemos o maior volume possível de dinheiro novo para a complementação federal, se possível sem a inclusão do Salário Educação na conta. Alguns parlamentares e educadores envolvidos no debate parecem ter a mesma posição. Mas, se a inclusão ocorrer, não deve ser considerada uma derrota. Alguns têm dito, por exemplo, que o aporte passaria de 10% para 15%, e que os 5% do Salário Educação entrariam como uma maquiagem. Definitivamente não é bem assim. Hoje, o Salário Educação está disponível no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, com uso apropriado em vários casos. A compra de livros didáticos é um exemplo. Com as encomendas feitas pelo governo federal como comprador único, em grande escala, o custo unitário do livro cai drasticamente. Isso seria impossível com a pulverização das compras entre os municípios.
Os livros são depois encaminhados para as escolas em todo o país a custos bem menores do que se fossem comprados pelas prefeituras. Um livro comprado pelo governo federal a R$ 5, R$ 6 ou R$ 10 a unidade, por exemplo, passaria a custar R$ 30, R$ 40 ou R$ 50 em lotes menores. Não se trata, portanto, de maquiagem. Precisamos, é claro, lutar pelo dinheiro na ponta, mas com inteligência. Às vezes, pode significar ineficiência – e o caso dos livros didáticos é um bom exemplo. Mas em relação a outros recursos incluídos no Salário Educação, como os do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE, e do Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar, o PNATE, seria conveniente que eles fossem, de fato, para os estados e municípios. O controle do governo federal nesses casos realmente não faz o menor sentido.
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Você e a equipe do Todos costumam defender que é preciso diminuir, no que for possível e sempre que possível, o que chamam de ‘poder financeiro’ do MEC. O que isso significa?
O Fundeb é um mecanismo criado justamente pela necessidade de levar o máximo de recurso possível para a ponta, onde estão os alunos, os educadores e as comunidades. Assim deve funcionar praticamente todo o sistema de educação. O MEC não precisa e nem deve ter o grande poder financeiro que possui em um país com tamanha dificuldade para enfrentar os problemas da educação na extremidade final. O correto seria controlar outro tipo de poder, de formulação, estabelecimento de padrões e metas, avaliação, mensuração, planejamento e tarefas afins, controlando apenas os recursos suficientes para gerir a execução dessas demandas e objetivos. O restante dos recursos… para a ponta. Os problemas da educação brasileira tomam dimensões preocupantes desde o início, em grande parte, por causa dessa concepção equivocada a respeito das dimensões, do porte e do que deve ser realizado pelo MEC de forma centralizada.
O que acha da gestão do MEC no governo Bolsonaro e do atual ministro da pasta, Abraham Weintraub?
Quero dizer algo sério sobre isso. Estou assustada com o silêncio de grande parte da sociedade, pais e famílias, com a falta de indignação e de respostas contrárias fortes, mesmo de grande parte dos educadores e de gestores educacionais, diante da atuação desastrosa desse ministro à frente da educação brasileira. Isso tem me incomodado absurdamente. Não é possível que os brasileiros tenham hoje o pior ministro da história da educação brasileira – repito: o pior ministro da história da educação brasileira – e não subam a um tom de protesto compatível com a tarefa que o momento nos impõe. Isso é ainda mais doloroso em grande parte da comunidade educacional. Estou impressionada com a apatia e a tolerância diante desse nível de incompetência e despreparo. Este cidadão está em guerra cultural plena e destrutiva contra a educação. No front ideológico. Mesmo assim, o silêncio, onde não deveria existir, é constrangedor. Um absurdo. Onde estão os protestos das escolas, dos educadores? Há gritaria de um lado, o do governo, e quase nada do outro. Nós, da educação, não podemos admitir esse nível de incompetência e truculência. A imprensa, sobretudo a especializada, deveria ser clara na seguinte mensagem: não dá para tolerar um ministro desse, que está destruindo a educação brasileira. Mas o tempo passa e nada acontece. É desolador.
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