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As diferenças entre fake news, pós-verdade, deepfakes e o papel da escola

Estudiosa da disseminação de notícias falsas e manipulação da realidade na internet, Mariana Barbosa destaca a função da instituição escolar em formar pessoas conscientes de seu papel como propagadores de informações

Publicado em 18/05/2020

por Eduardo Marini

A jornalista Mariana Barbosa deu uma contribuição importante para entendimento dos conceitos de fake news, pós-verdade e deepfakes (falsidades profundas). E também sobre suas aplicações nessa era de popularização da internet e redes sociais. Nascida em Londres, com parte da formação em Brasília e passagens por alguns dos principais veículos de comunicação do país, ela organizou e lançou recentemente o livro Pós-verdade e fake news – Reflexões sobre a guerra de narrativas (Editora Cobogó, R$ 27,90 em média o e-book, e R$ 39 a edição impressa). O trabalho reúne duas entrevistas e oito textos de estudiosos do tema, entre eles o jornalista e pesquisador brasileiro Eugênio Bucci e o cientista político americano Peter Warren Singer. Nesta entrevista a Educação, Mariana explica cada um desses fenômenos e detalha como eles penetram na sociedade brasileira. E defende o estudo de media literacy (literatura de mídia) em escolas e cursos superiores. “É o que já fazem boas instituições de ensino no mundo, algumas delas brasileiras”, destaca. Acompanhe:

Leia: Em tempos de fake news, prevalece a lacração e o uso matreiro

fake news

“Donald Trump e Jair Bolsonaro costumam identificar tudo contrário a eles, vindo de qualquer veículo, como fake news, mas na suprema maioria dos casos são notícias verdadeiras que não lhes agradam”

Vamos começar pelo começo: o que é fake news e no que ela difere, tecnicamente, da notícia com erro?

Notícia errada é equívoco involuntário, não intencional. Fake news é informação intencionalmente tomada por erros ou falsidades, emitida e reproduzida para construir uma narrativa e atingir determinado objetivo. Na eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, há um clássico: eles editaram uma foto, exibindo apenas parte do local, a que estava mais cheia, para dizer que na posse dele havia mais gente do que na de Barack Obama. Logo depois, a agência de notícias Reuters publicou uma foto geral do ambiente, mostrando claramente que a quantidade de pessoas presentes era menor na posse de Trump. O jornalista e pesquisador Eugênio Bucci trata bem dessa diferença no livro. Ele destaca que, no caso dos veículos de comunicação sérios, não é certo chamar notícia com erro de fake news, notícia falsa na tradução literal, e sim de notícia errada ou com erro. Esses veículos, quando publicam algo errado, reconhecem o equívoco e publicam as correções. Não erram por deliberação ou intenção, mas porque houve ruído no caminho. É diferente de pessoas, grupos ou até veículos de comunicação que trabalham com fake news e publicam coisas intencionalmente erradas para atingir uma meta qualquer, seja ela comercial, política ou mesmo individual.

Erro deliberado embalado em formato jornalístico para convencer?

Exato. Normalmente, os emissores de fake news usam técnicas jornalísticas – um título, um site com características de veículos tradicionais – para angariar credibilidade no conteúdo falso transmitido. Falsidades com embalagens convincentes. Políticos costumam classificar de fake news as notícias com erro publicadas por veículos sérios, sobretudo quando o resultado não lhes favorece. É um erro. OS veículos de jornalismo legítimo possuem endereço, CNPJ, registros nacionais, estaduais e locais, origem declarada, se retratam, e você pode processá-los. Donald Trump e Jair Bolsonaro costumam identificar tudo contrário a eles, vindo de qualquer veículo, como fake news, mas na suprema maioria dos casos são notícias verdadeiras que não lhes agradam.

No caso das fake news por crença em algo desmentido pela realidade e a ciência, você acredita que há relação com o que os estudiosos chamam de viés confirmatório, o processo cognitivo que faz crer e compartilhar informações de forma seletiva para continuar convencido de que o correto é unicamente o que já se crê?

Sim, e os casos da Terra plana, do homem que ainda não foi à Lua, das vacinas que não funcionam e matam e da mamadeira de piroca são clássicos. Alguns desses com muitos seguidores não só Brasil, mas no mundo todo. Os crentes na Terra plana acreditam ser ao menos 5% da população mundial, ou 385 milhões pessoas. No Brasil, uma pesquisa feita pelo Datafolha no início de julho de 2019 mostra que 7% dos maiores de 16 anos, aproximadamente 11 milhões de pessoas, não acreditam que o planeta seja esférico. Trinta milhões de brasileiros, cerca de 15% da população, simplesmente dizem que o homem não foi à Lua e tudo o que se vê sobre isso é armação. Os disparos de robôs foram decisivos nas últimas eleições e estão aí para quase tudo, mas muita gente recebe fake news e dissemina sem a menor reflexão sobre a veracidade ou não da coisa. Querem, na verdade, reafirmar a própria convicção, se divertir ou as duas coisas. Um perigo.

A pessoa quer pertencer a determinado grupo de qualquer jeito, porque se identifica com ele, e faz qualquer negócio para isso…

Sim. E aí posta qualquer coisa que reforce as teses do grupo, que são também as suas. Conferir se é verídico fica secundário. Os casos da mamadeira de piroca e dos grupos radicalmente contrários e refratários a um partido ou ideologia política são exemplares dessa questão. Nas 24 horas anteriores ao pedido de demissão do então ministro Sérgio Moro, várias pessoas – dezenas de jornalistas políticos importantes, respeitados e badalados no país, inclusive – enviaram mensagens ao jornal Folha de S. Paulo, que antecipou a saída, dizendo que era fake news, inclusive com o argumento de que a coisa fora desmentida por “fontes importantes e respeitadas” consultadas por eles. No dia seguinte, a Folha fez questão de lembrar a cada um dos contestadores que não era fake news, “e sim jornalismo”. É a realidade que estamos vivendo…

fake news pós-verdade

E o que é a pós-verdade exatamente?

Pós-verdade foi o termo do ano do Dicionário Oxford em 2016. Na definição da própria obra, significa uma situação em que os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos nacionais, teses comprovadas e conclusões pessoais. Não importam as evidências de que a Terra é redonda, os aviões e navios que comprovadamente partiram, deram a volta ao planeta com escalas e chegaram, pelo outro lado, ao mesmo lugar. O importante é a verdade individual, a minha verdade, a verdade que desmente o fato comprovado. Em resumo, a pós-verdade. A onda é a de não analisar mais nada; apenas emitir opinião, seja ela qual for e de qualquer maneira.

Todo mundo com opinião imediata sobre tudo. Agora, procurar estudar para embasar ou não aquela opinião, aí é outra coisa…

Isso. Na história, a humanidade construiu a verdade em cima de fatos, mas para quem acredita na Terra plana, por exemplo, essa é a verdade, ainda que não baseada nos fatos. Para quem acha que vacina não resolve e ainda faz mal, não adianta dizer que eles e nós estamos aqui porque nossos ascendentes mais próximos foram vacinados. Neste novo mundo da pós-verdade, cada um escolhe a tese em que deseja acreditar e transforma aquilo em verdade. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, por exemplo, parece viver em um mundo absolutamente paralelo. Não é possível questionar coisas tão elementares daquela forma. Atitudes como essa são péssimas para a sociedade. Aquelas coisas que ficavam restritas como folclore em meio à gente de comportamento folclórico viraram teses de multidões com a internet e as redes sociais. A pessoa precisa acreditar que a pandemia é real e mata, senão vai continuar em aglomerações sem cuidados, se infectar e contaminar outro que acredita no perigo, se cuida e não tem nada a ver com isso. Além de tudo, é extremamente injusto. E como fazer política pública sem seguir dados e experiências, apenas na base do achismo? Impossível.

Leia: Fake news, um bom negócio?

Os algoritmos contribuem para isso?

Muito. Demais da conta. Dia desses acompanhei um trabalho com um dos criadores do algoritmo na mídia americana. Ele dizia que, no começo, eles foram implantados apenas para buscar audiência, gerar cliques. Com esse único apelo, eles passaram a criar frustração nos consumidores entre o título e o conteúdo. Por isso, aprimoraram os algoritmos para eles trabalharem também na manutenção do consumidor o maior tempo possível à frente dos conteúdos. Então, se você abrisse um vídeo ou propaganda de um gatinho, ele em seguida te mandava outro e outro e outro e outro gatinho. No caso do YouTube e de outras plataformas de vídeo, isso aumentou drasticamente o tempo de uso das pessoas. O objetivo inicial foi comercial, e não o de criar instrumentos para a ascensão da extrema-direita, por exemplo. Mas a consequência residual, o efeito colateral, acabou sendo jogar as pessoas, cada vez mais, em bolhas.

Qual o papel da ciência nesse cenário?

A questão da credibilidade da ciência é importante no contexto. As pessoas começaram a questionar a credibilidade da ciência, em grande parte, por uma série de atitudes erradas. Teve cientista que ganhou muito dinheiro defendendo cigarro, veículos e jornalistas levando grana para alavancar grupos de interesse e produtos nem tão eficazes assim, amplificando artificialmente as soluções apresentadas, atitudes antiéticas por dinheiro, aquecimento global, aumento de pobreza e desigualdade, imigrantes humilhados sofrendo como nunca nos países ricos, enfim, uma série de coisas negativas. Convenhamos: o mundo, antes da guinada à extrema-direita vista em vários pontos, e também da pandemia, não estava em boa fase. Ao contrário. Com a internet e as redes sociais, cada cidadão plugado virou um “veículo”. Quando se soma tudo isso à realidade constatada pelo escritor Umberto Eco, de que a internet tem pontos positivos, mas também o efeito colateral negativo de dar voz aos imbecis em todo o mundo, deu no que deu. No início da internet, havia a ilusão de que ela seria apenas positiva, democracia geral, mas hoje vemos que não. As pessoas perderam renda e qualidade de vida no mundo todo e, ressentidas, com descontentamento, passaram a questionar a política, a ciência e todas as outras instituições que deveriam promover as soluções e, a rigor, falharam.

E as deepfakes, o que são?

São a manipulação levada ao extremo, normalmente de áudio, imagem estática e vídeo, por produtores de fake news, com a intenção de tornar difícil, até mesmo impossível ao primeiro contato, a percepção de que o material foi adulterado e não corresponde à verdade. Com a evolução, democratização e o barateamento da tecnologia, as deepfakes serão cada vez mais comuns, volumosas e disseminadas na sociedade. Caminho evidentemente perigoso, mas claramente sem volta. Elevarão as fake news a um patamar imprevisível. Um dos primeiros casos mundiais clássicos foi aquele do filme em que Barack Obama aparece falando coisas que jamais disse, com uma perfeição técnica extremamente convincente. Uma das propostas, ao menos para os veículos sérios, é identificar e descrever minimamente os casos em que houve edição daqui para frente, mesmo que com objetivos estéticos. Agora, o resultado final da manipulação tende a ficar tão perfeito em tão pouco tempo que poderá haver o discurso contrário. Imagine a seguinte situação: alguém é filmado fazendo algo que o comprometa e sai com a desculpa de que o filme verdadeiro é manipulado. O real e o adulterado ficarão tão próximos que será extremamente difícil identificar um ou outro neste mundo com desequilíbrios técnicos e de todas as ordens.

Há como controlar tudo isso?

Não acho as ações de censura convenientes. E nem aparentemente possível criar leis para proibir fake news. Mas isso não significa que a coisa deve funcionar sem qualquer regulamento. Os veículos de comunicação precisam ser chamados à discussão. E as pessoas devem ser individualmente responsabilizadas e punidas toda vez que houver violação do direito alheio. Afinal de contas, a sociedade funcionou assim até agora. Mudaram as plataformas.

O que fazer nessa realidade de fake news e pós-verdade, que pelo visto vieram para ficar, no universo da educação?

Não posso responder como educadora, mas é caminho sem volta, elas só irão se aprofundar. Precisamos de ações individuais. As pessoas precisam ter noção de responsabilidade sobre o que propagam e consomem no espaço da internet, e neste ponto as escolas e universidades precisam ter papel de formação. Isso pode ser feito de forma multidisciplinar, mas é importante que os programas educacionais contemplem essa missão. Na era do “eu difusor”, os jovens precisam ter dimensão do que isso representa e do potencial de prejuízo a ser gerado quando a ferramenta é usada de forma errada. Precisam ser educados para navegarem de forma consciente, e a escola não pode simplesmente julgar que não tem um papel nessa história. É a chamada media literacy, que já está presente em boas escolas do mundo e até do Brasil. As pessoas precisam saber identificar os contornos de uma notícia, e isso deve, sem dúvida, ser trabalhado também nas escolas e graduações, e não apenas na família e na sociedade. A educação se torna, cada vez mais, um dos pilares de responsabilidade para atingir essa meta.

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