NOTÍCIA
As enxurradas de informações, que dificultam o acesso e interpretação do que é relevante, são destaques desta coluna do professor João Jonas V. Sobral
Publicado em 22/05/2020
Nosso mundo, a passos largos, é cada vez mais mediado pela linguagem verbal e não verbal. Palavras e imagens inundam as telas de televisão, smartphones, computadores e até de mídias impressas. No saco sem fundo das redes sociais o caldo engrossa. Memes, montagens de textos e imagens se misturam a conversas despretensiosas, fofocas, artigos de jornais, artigos científicos, relatos do dia, vídeos fofos ou não, mensagens de autoajuda e por aí vai, tudo junto e misturado, num caldeirão de informações perigoso – ou, nas palavras de Gil, ampliando “a geleia geral brasileira.” Em uma mesma timeline ou em uma tela de grupo de WhatsApp mal se digere uma mensagem e já chegam outras em profusão de prosódias e de paródias, como dizia mestre Caetano.
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Difícil, para usar uma expressão analógica, separar o joio do trigo, na semeadura da tela e na colheita da mente. A cada acontecimento noticioso, vamos de um extremo ao outro sem nenhum critério de seleção de exposição e de entendimento. Apenas surfamos na onda gigante e inconstante do que é enunciado. Um fato trágico é encaminhado imediatamente, sem filtro avaliativo razoável, por seres apressados. Essa pressa em publicar, o açodamento das redes sociais torna ainda mais complexa a relação linguística entre enunciado, enunciador e interlocutor.
Segundo Thais de Mendonça Jorge, jornalista e professora universitária, “foca” é como se denomina o aprendiz de repórter que “jogado na arena dos leões – as redações, com colegas vividos e conhecedores dos assuntos –, pressionado pelo tempo e pelas responsabilidades, se sente, por vezes, afundar nas incertezas e indecisões do dia a dia. Afinal, não é desejável que ele fique perdido na costa ártica, nas lonjuras do hemisfério austral – como seus homônimos, as focas –, isolado, sem respostas”.
Esse foca é o profissional da notícia, não o propagador caseiro de informações. Cabe ao profissional iniciante a responsabilidade da notícia exata, e a certeza da integridade do que será veiculado e editado por seus experientes supervisores. Ele não pode permitir que a afobação e “a sede de nomeada de glória”, como dizia Machado de Assis, se sobreponha ao apuro e à apuração do que será notícia, não importa se trágica ou cômica. Ele tem que respeitar o fato e avaliar com critério a fonte.
Já nas redes sociais, enunciadores e interlocutores vão trocando de papel em ritmo frenético pouco razoável para quem, no universo da escrita e da imagem, deseja entender, digerir, compreender e interpretar se aquilo se propôs notícia, chiste, aviso, alarme, informação ou histeria. A interlocução dissolvida em uma enxurrada de publicações díspares do mesmo fato mais confunde do que lança luz à questão tratada e, para piorar, essa relação aliada ao afã mais de responder ou republicar do que de entender, compreender e interpretar faz tudo desaguar no mar imenso de outra coisa que vai gerando ondas de incompreensão e de transformação do fato.
Segundo o dicionário Aurélio, o verbete “compreender” origina-se do latim comprehendere e apresenta as seguintes acepções: 1. Conter em si; constar de; abranger. A República Federativa do Brasil compreende 26 estados e um distrito federal 2. Incorporar; englobar; incluir. A sua contagem não compreendeu as crianças abaixo da idade escolar 3. Alcançar com a inteligência; atinar com; perceber, entender. Não compreendo a razão de sua raiva. 4. Perceber ou alcançar as intenções ou o sentido de. Compreendi sua atitude e não insisti.5. Entender (alguém) aceitando como é. Jamais buscara realmente compreender o filho. 6. Dar-se conta de; perceber, ver. Durante muitos anos não compreendi onde me achava. (Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere) 7. Entender; ouvir. A palestra foi tumultuada, mal pude compreender o conferencista.
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“Interpretar” – o primo próximo de compreender na acepção do sentido e distante na morada das páginas do dicionário veio também do latim interpretare, por interpretari – traz sentidos relativamente parecidos 1. Ajuizar a intenção, o sentido de. Não pôde interpretar o pedido da namorada. 2. Explicar; explanar ou aclarar o sentido de (palavra, texto, lei etc.) O juiz interpretou o fato sob a luz da lei. 3. Tirar de (sonho, visão etc.), indução ou presságio. A oniromancia é a arte de interpretar sonhos. 4. Traduzir ou verter de língua estrangeira ou antiga. O padre interpretou da bíblia as difíceis passagens para os fiéis. 5. Representar no teatro, cinema, televisão. Fernanda Montenegro representou grandes personagens no cinema. 6. Julgar; considerar; reputar. Interpretou o seu silêncio como pressentimento.
As duas habilidades cognitivas, pertencentes à mesma família, exigem de quem as manipula digestão de jiboia. Pedem calma, paciência e apuro dos focas amadores ou profissionais, de qualquer profissional ou jornalistas experientes e de todo leitor ou ouvinte para que ajam com discernimento e razoabilidade em tempos tão cheios de afoiteza, ansiedade, sofreguidão e imprudência.
Recentemente, tivemos exemplos clássicos e tristes dessa ausência de temperança e de apuro no trato com o fato e com a notícia, emanados direto do Planalto Central. Diante de um vírus de contágio perigoso e mundial, de uma calamidade pública desastrosa, nosso chefe maior desdenhou da realidade impactante com rapidez incompatível para quem tem por ofício e delegação compreender com tranquilidade, alcançar com a inteligência, atinar com sabedoria, perceber com lucidez e entender com clareza o que estava por vir; e, fundamentalmente, dar-se conta do fato e ajuizar o sentido do problema com sapiência, julgar com argúcia e alertar com sobriedade seus subordinados e a nação que comanda.
No entanto, o que vimos foi uma ligeireza em minimizar um problema grave, chamando-o de fantasia e de histeria da mídia e, para piorar, saiu à porta do Palácio do Planalto oferecendo a mão e o rosto para o contato direto com seus seguidores. Talvez com a pressa dos maus leitores ou dos publicadores de notícias e de informação ou de um foca mais vaidoso do que cioso, nosso capitão escolheu a acepção 5 de interpretar oferecida pelo Aurélio (“representar no teatro, cinema, televisão”), a mais perigosa para a situação que se avizinhava.
Há um meme na internet, divertido, viralizado e triste sobre a pressa de quem lê com a ansiedade de quem engole sem mastigar e digerir que talvez ilustre o que foi até aqui tratado nesta coluna.
Nelson Rodrigues, sempre sábio, dizia que sem paixão não se chupa nem um Chicabom. Talvez, se estivesse vivo, poderia dizer que com pressa e ansiedade de compreender sem antes entender não se come nem um bolo de morango.
João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e orientador educacional.
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