NOTÍCIA
Num mundo de conexões, a educação formal ainda precisa compreender as relações
Publicado em 09/02/2021
Quando jovem jornalista, presenciei a chegada da primeira rede de computadores às escolas estaduais de São Paulo, nos longínquos anos 90. Fui convidado a assistir a uma das primeiras aulas nas recém-instaladas salas de informática. Os alunos se perfilavam ante cada computador. Um por um sentavam-se ao lado da professora que os “ensinava” como ligar e desligar a máquina, via sistema operacional Windows. Assim que a desligavam, o jovem seguinte ocupava seu lugar na cadeira.
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Há 25 anos essa cena não me sai da cabeça pois se tratava de um dos momentos mais inanimados, mecânicos e repetitivos que presenciei em uma sala de aula, em oposição a um momento de vida dos mais inquietos e explosivos de um estudante: a adolescência. Qual descompasso abria essa fenda de melancolia e pessimismo quando eu presenciava aquilo que parecia encenado catastroficamente para satisfazer a uma manchete de jornal?
Afinal, o homem já havia ido à Lua, o supercomputador Hal já colocara nossa identidade em xeque e Philip K. Dick já havia desenhado o futuro distópico de Blade Runner. Enquanto isso, os estudantes, na escola, apertavam botões.
Com o tempo, percebi que havia três questões principais que viriam a se tornar explícitas para quem estuda, vive ou se interessa por educação: 1 – como o currículo poderia enxergar o que se chamava então de informática e suas relações entre disciplinas e competências; 2 – como os professores seriam formados para encarar uma realidade digital; 3 – como a construção do digital poderia se integrar à vida e interesse do estudante.
O momento desconexo ainda ecoa nos corredores e salas de aula de hoje — mesmo com uma população de aparelhos celulares maior que a de brasileiros.
A educação formal não superou o olhar instrumental sobre a tecnologia.
Não é incomum educadores se referirem (e celebrarem, com certo desprezo) às tecnologias digitais como “ferramentas” ou “instrumentos” para se chegar a algo sim relevante: o conhecimento humano.
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Também não faltam metodologias e linhas de pensamento que colocam a internet como um mundo a ser evitado; e quem superá-lo poderá evoluir. A construção de um olhar instrumental é oriunda de uma formação de educadores que não contempla com profundidade a questão; gera medo e desinformação com relação ao desconhecido. Também provém de uma tradução equivocada do termo inglês “tool” que, na verdade, transcende o sentido de ferramenta (como um martelo) e está mais ligado ao que podemos entender como o que nos possibilita transformar ou modificar (uma extensão de nossas possibilidades).
As tecnologias digitais são a terceira etapa evolutiva que define a relação da inteligência dos seres humanos com o mundo, sua compreensão e a interferência no mesmo. Dessa forma o filósofo Pierre Lévy abriu as portas dos tempos digitais com seu livro As Tecnologias da Inteligência, quando ainda usávamos o termo informática. Segundo ele, passamos pela oralidade, escrita e, então, a “informática”. Trata-se de um conjunto de técnicas capaz de moldar as mensagens e o universo em que vivemos.
Nesse sentido, em pleno adolescer, um estudante do ensino médio vive seus conflitos em casa com os pais; mas também se posiciona politicamente quando assina uma petição online ou se expressa quando produz um pequeno filme com o celular. Sua inteligência se apresenta em forma de linguagem por esses dois meios. Seu mundo é offline e online. De certa forma, o jogo Minecraft representa uma realidade tão verdadeira quanto a das cidades em que vive. Pierre Lévy lançaria Cibercultura posteriormente, colocando o ciberespaço e suas implicações como elemento central das políticas públicas.
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A educação formal e seus currículos necessitam superar a visão “instrumentalista” sobre a tecnologia.
A Base Nacional Comum Curricular abre portas para termos como “cultura digital” e competências digitais. Entretanto, sem um olhar e formação adequados dos educadores, há um risco real de que, quando implantada em sala de aula, a BNCC ganhe contornos instrumentais, exóticos ou distópicos em práticas distantes do mundo do estudante.
Como linguagem, a cultura digital é composta por um campo lógico, um estético e um ético. Deve estar aberta à construção de pensamentos (como na programação), à livre expressão dos estudantes (como na produção de blogs, games, reportagens e vídeos) e também dotada de um arcabouço moral e ético de limites e modos de uso (como nas práticas de educação midiática).
O brilhantismo do trabalho da professora Débora Garofalo, reconhecida como uma das melhores do mundo pela Varkey Foundation, vem de como as questões trabalhadas por seus estudantes nascem da realidade da sala de aula, ganham corpo no desenvolvimento de competências sofisticadas, como a linguagem computacional, a robótica e a criatividade, e resultam em protótipos aplicáveis. O que viraria lixo se transforma em matéria viva e útil. É a tecnologia como cultura que brota da própria comunidade escolar.
Não há oposição entre homem e máquina, como propõe Lévy. É na relação (e nas técnicas) de ambos que se constrói a realidade. Portanto, a rota virtuosa da cultura digital dentro da escola deve contemplar ler, analisar, avaliar e criar tecnologia. Em outras palavras, possibilitar que arquitetem o uso do digital como o analógico para definir as relações que desejam na vida da comunidade. A utopia de lançar novos mundos dentro do mundo deve ser nutrida com otimismo.
*Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador, diretor da ZeitGeist e co-chairman da aliança mundial da Unesco para educação midiática, a UNESCO MIL Alliance.
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