NOTÍCIA

Edição 279

Orientação sexual e identidade de gênero: escola precisa saber incluir

Pessoas com identidade e orientação “fora do padrão” desfrutaram os piores períodos de suas vidas na escola, espaço de discriminação e preconceito

Publicado em 01/10/2021

por Karen Cardial

Os danos ocasionados pelo desrespeito à diversidade chegaram a números assustadores: 54% dos assassinatos de pes­soas trans do mundo inteiro acontecem no Brasil, segundo a ONG Transgender Europe, e a expectativa de vida dessas pessoas é de 35 anos, constata a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Ao mesmo tempo, os brasileiros são os que mais consomem pornografia trans. Especialistas também alegam que LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais e mais) têm mais transtornos mentais, depressão, ansiedade, suicídio, automutilação e autolesão por conta de dificuldades na escola. Vale lembrar que o preconceito, a discriminação, o estigma e a violência são impostos desde cedo ao dia a dia da sociedade.

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Referências do que é de menino e de menina são passadas para as crianças e é preciso desconstruir isso. Questões de gênero devem ser trabalhadas na escola. Com os pequenos, o esforço é para o entendimento e respeito à diversidade, porque é nessa fase que começam a distinguir nariz grande, nariz pequeno, orelha grande, orelha pequena, cabelo diferente, pele negra, pela branca, dando início aos bullyings pelo outro ser diferente. Então, trabalhar uma cultura de que a diferença é normal e bonita melhorará a vida de todos que sofrem discriminação.

A transexualidade não se relaciona com a orientação sexual, mas se refere à identidade de gênero. Dessa forma, corresponde às pessoas que não se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento. As travestis também são incluídas nesse grupo. Porém, apesar de se identificarem com a identidade feminina, constituem um terceiro gênero.

identidade de gênero

Saulo Vito Ciasca:
“A identidade
de gênero e a
orientação sexual
são autoatribuídas

Questão de sobrevivência

“É na escola que acontecem as piores situações”, registra Saulo Vito Ciasca, médico psiquiatra pela USP e coordenador titular da área da saúde da Aliança Nacional LGBTI+. Ao falar com um adolescente, é comum Ciasca insistir que ele sobreviva a essa escola: “Aguenta firme porque isso vai passar, é uma fase”. A experiência na escola é terrível, espaço de discriminação e preconceito, onde a desinformação toma conta. É fundamental entender como é que se desenvolve a orientação sexual e a identidade de gênero, diz Ciasca, também coordenador da pós-graduação em psiquiatria sanar.

A partir de estudos, há evidências de que tanto a identidade de gênero, que é como o indivíduo se identifica (sou menino, sou menina, sou travesti, sou não binário), quanto a orientação sexual (atração para onde está orientado o desejo), têm uma matriz biológica determinada por questões genéticas, estruturais e cerebrais. E também diferenças na quantidade de hormônios dentro do útero, ensina Ciasca. “Você não muda a orientação sexual de ninguém”, conclui o médico.

De acordo com Saulo Vito Ciasca, a identidade de gênero e a orientação sexual são autoatribuídas, é a pessoa que vai dizer quem ela é. Profissionais de saúde e educadores devem oferecer as condições para o indivíduo ter liberdade e se sentir bem, para poder ser quem é. E ser quem é não significa fazer o que quiser, significa ter limites. Há limites, pois se vive em sociedade. “Mas por que a pessoa tem que ter limites em quem ela vai ser?”, desafia o médico.

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Diversidade, ainda um desafio

“O meu filho mais velho desde pequeno tinha alguns estereótipos que já nos sugeriam que seria um homem LGBT. Lembro a primeira vez que verbalizei para alguém que meu filho talvez fosse gay; ele tinha sete anos”, revela Andrea Hercowitz, pediatra, hebiatra (medicina do adolescente) e coordenadora da pós-graduação em hebiatria do Hospital Israelita Albert Einstein.

orientação sexual escola

“Ser LGBT não é ensinado, tampouco essas pessoas escolheram ser assim”, diz Andrea Hercowitz

Certa vez, enquanto dava uma palestra para adolescentes sobre saúde LGBT, um aluno perguntou a Hercowitz: “Você acha que agiu assim na compreensão dos seus filhos pela criação que você teve?” “Sem dúvida nenhuma”, Hercowitz respondeu.  A médica se lembra de que a primeira boneca que pediu foi uma negra. Ela veio de uma família que sempre trabalhou o respeito ao outro. A diversidade em qualquer forma era aceita.

Porém, não foi só Hercowitz e seu marido que notaram as nuances do comportamento do filho. As crianças na escola também perceberam, e ele começou a sofrer bullying aos sete anos. Desde pequeno interessava-se pelo universo feminino, nas escolhas de amizade; se sentia melhor com as meninas e nas atividades padronizadas como delas. Logo cedo apresentou talento para dança, canto e teatro. Com 11 anos estava no palco fazendo musical, motivo de orgulho para a mãe. Mas na escola era difícil, e não sabendo se proteger, não se livrou dos bullyings.

“Se você falar com homens gays, quase 100% deles sofreram bullying na infância dentro da escola, quando ainda não sabiam que eram gays, pois, apesar da escola ser o lugar fundamental para a saúde mental e física das crianças, há muita dificuldade em lidar com essas questões’’, afirma Hercowitz.

Quando a escola não acolhe

“O bullying acontece e existem escolas que têm uma boa orientação e outras que fecham os olhos para não verem”, lamenta a médica, que é coordenadora de saúde da ONG Mães pela Diversidade, em São Paulo. “Certa vez, numa reunião da escola, a professora, em relação aos constantes bullyings que meu filho sofria, me disse: “Nós já falamos para os alunos que seu filho não é gay”, e Hercowitz respondeu: “Vocês estão agindo errado, devem falar: E daí se ele for? Vocês não estão sabendo lidar com isso”, desabafou a médica.

Ciasca atendeu mais de 100 crianças e mais de 300 adolescentes trans no ambulatório do Hospital das Clínicas, o AMTIGOS (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), e quando perguntava a um adulto desde quando começou esse sentimento diverso, este lhe respondia: “desde que eu me conheço por gente, desde sempre”.

O médico lembra que aos quatro ou cinco anos podem começar a brincar com crianças de outro gênero, querer roupas de outro gênero e reivindicar essa identidade. Quando agem assim por mais de um ano, muitas vezes afirmando “não sou menino, sou menina”, vem o sofrimento e a constatação de que há algo “errado”. É quando Ciasca faz o diagnóstico.

Importância da escuta

Ao receber uma criança que está há mais de um ano deprimida, triste, irritada, sem querer ir à escola, sem se relacionar, fechada no quarto, apresentando choros constantes, a orientação que o médico dá é: “Vocês já tentaram escutar e respeitar a vivência dela? Deixá-la se expressar nesse gênero que ela diz ser, para ver como é?” A resposta da família é sempre o receio de influenciar a criança, explica Ciasca.

As pessoas têm muito medo, achando que podem confundir as crianças, que ao conhecerem as diversidades ficarão confusas, podendo então decidir se serão meninos ou meninas, prossegue o médico, que ressalta tratar-se de uma questão cerebral, estrutural e genética.

O que se preconiza para crianças que estão na escola reivindicando determinado gênero por muito tempo (não é demais repetir que não são quaisquer crianças que, de repente, querem brincar de ser menino ou menina, há um diagnóstico baseado no tempo de sofrimento) é que façam o processo de transição social: mudança de nome, de roupa e mudança de pronome, discorre Ciasca.

“A criança não faz cirurgia, tampouco faz uso de hormônios. A transição social é completamente reversível. Se a criança não está se sentindo bem com isso, pode usar outra roupa, outro nome e pronto.  Deve-se respeitar o tempo da criança e ajudá-la a se sentir bem”, complementa o médico, autor do livro Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar (ed. Manole).

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Bloqueio puberal

Com os adolescentes, o quadro muda. Ao entrarem na puberdade podem vir a sofrer por conta disso, explica Ciasca. Nesse caso, é feita uma avaliação se o adolescente tem critérios de elegibilidade, que é quando uma equipe transdisciplinar formada por profissionais da saúde (psicólogo, psiquiatra, endocrinologista) entende que há indicação para fazer o bloqueio puberal. Esse tratamento é realizado desde 1970 em crianças que têm a puberdade precoce, seguindo bloqueadas até os 11 ou 12 anos, para que possa continuar seu crescimento. “Não há nos últimos 30 anos nenhuma evidência de qualquer problema decorrente do bloqueio puberal”, garante Ciasca.

“Se sua filha de seis anos começa a ter a puberdade precoce, o pediatra indicará o bloqueio puberal, que ao ser retirado a puberdade acontecerá normalmente. Seguro e completamente reversível”, finaliza.

escola e orientação sexual

Marcelo Limão é especialista em diversidade sexual e de gênero

Da casa à escola

O IBGE, no último censo, deu conta de 10% da população ser LGBTI+, embora acredita-se ser um número subestimado, porque a pesquisa é muitas vezes feita dentro de casa. Estima-se que haja cerca de 16% a 18% da população LGBTI+ em algum espectro dessas possibilidades. Sendo assim, dentro das escolas 10% de crianças e adolescentes podem ter orientação sexual ou identidade de gênero diversa, registra Marcelo Limão, especialista em diversidade sexual e de gênero e saúde mental no trabalho pelo IPq-USP, além de conselheiro da ONG Mães pela Diversidade.

Hercowitz, pediatra que atende em clínica privada e no Centro de Especialidades Pediátricas do Hospital Israelita Albert Einstein, reforça o papel da escola em reconhecer que estatisticamente há alunos com questões de diversidade de gênero, sexual e/ou de corpos e entender que essas pessoas são vítimas frequentes de bullying, pois fogem dos padrões impostos pela adolescência, fase de muita insegurança. “A escola precisa reconhecer que isso pode estar acontecendo lá dentro”, frisa Hercowitz.

A pediatra entende que o colégio deve coibir qualquer tipo de bullying assim que ele surge. Essa prática tem efeito contagioso. Preconiza que na sua função de ensinar a escola deve mostrar que existem pessoas diferentes.

Se conhecer e conhecer o outro

“Particularmente, acho que numa aula de biologia deveria ser ensinado que existem corpos diferentes. Você imagina a criança intersexo nunca ouvir falar da possibilidade de ela existir? Ou aquela que tem dois pais e a escola fica o tempo todo falando de pai e mãe? Sem ser uma imposição, assim como existe a diversidade racial, diversidade intelectual, física, isso também deve ser mostrado”, opina a médica.

“Ser LGBT não é ensinado, tampouco essas pessoas escolheram ser assim. Se fosse uma opção não haveria nenhum LGBT, porque todos têm história de sofrimento”, conclui Hercowitz.

Quando um adolescente percebe que a piada que seu pai fez a vida inteira o está ridicularizando, quando nota, segundo a especialista, que a imitação de trejeitos se refere a ele, que é diferente da grande maioria, e que essa maioria não o aceita (os adolescentes, além de impulsivos, não suportam isso, preferem desaparecer), num momento de grande tristeza pode pular de uma janela e infelizmente não terá mais volta.

“Para mim é muito claro o papel fundamental da escola na saúde dessas pessoas. O processo primário de socialização da criança é em casa. O momento de ir para a escola é o segundo processo de socialização. Em geral, na nossa cultura, as famílias não vão aceitar essa ideia de ter uma criança LGBT e já terá uma negativa em casa. A possibilidade de reverter isso é na escola”, incentiva Marcelo Limão.

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Karen Cardial


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