NOTÍCIA
Ali pela década de 1960, os quadrinhos de Walt Disney eram o máximo da modernidade, agilidade, leveza, humor e criatividade. As histórias em “quadradinhos” foram, e são ainda, um enorme sucesso de atração de uma leitura rápida, com suportes ilustrados, muitos sons simulados e excessiva […]
Publicado em 25/10/2021
Ali pela década de 1960, os quadrinhos de Walt Disney eram o máximo da modernidade, agilidade, leveza, humor e criatividade. As histórias em “quadradinhos” foram, e são ainda, um enorme sucesso de atração de uma leitura rápida, com suportes ilustrados, muitos sons simulados e excessiva rapidez nas tramas.
Leia: A quem interessa a morte da escola?
Embarcados na imaginação quadrinhesca, as crianças e jovens viajavam por longas eras em pouco tempo e com pouco esforço, pois parte da tarefa da imaginação já estava cumprida pelos desenhos. Os personagens eram rocambolescos como uma família de patos, que se imiscuíam nas narrativas por laços de amizade com grupos de cachorros ou ratos…namoravam, viajavam, divertiam-se, acumulavam riquezas e faziam investigações contra o crime organizado de João Bafo de Onça. As aventuras mais longas e elaboradas dos desenhos do Pato Donald eram destinadas às suas viagens ao mundo agreste, nada civilizado e selvagem dos trópicos ou países orientais a serem conhecidos e explorados.
Tudo começava com um príncipe de uma tribo nativa preocupado com o furto de suas riquezas por algum grupo inimigo do rei. Para resolver os rombos de seus tesouros, ele acionava os famosos investigadores Huguinho, Zezinho e Luizinho e seu tio Donald, meio trapalhão. Os patos resolviam o problema, desmantelando a quadrilha de exploradores locais, e conseguiam – de lambuja – descobrir uma outra riqueza muito mais relevante, como uma mina de diamantes, ou poços de petróleo, que acabavam faturando como reconhecimento dos serviços prestados à realeza local. Ao fim, tudo ia parar no caixa-forte de moedas do Tio Patinhas.
Corte-se aqui o assunto. O que estava em jogo como moral da história era a inocência, a incapacidade e a falta de conhecimento da realidade civilizada por parte dos nativos, que carregavam o atraso e a falta de visão adequada do mundo. Nas histórias do Tio Patinhas, os nativos eram incapazes de interpretar o valor das riquezas, das maldades e das belezas que grassavam na sociedade avançada. A sociedade civilizada era a única que conhecia e intervinha nas práticas sociais, culturais e valorativas daqueles outros povos.
Em nossa sociedade, formada pela leitura de Pato Donald e Mickey, os nativos são aqueles que, com grande grau de inocência, não conseguem dirigir os seus projetos culturais, econômicos, sociais e educativos.
Eles têm que aprender docilmente com seu Grande Outro o que é o bem, como fazer o controle de seu território e como ser feliz – saltando de seu primitivo e despreocupado bem-estar para a civilização da família Disney e seus valores ditos civilizados.
Corte-se aqui, novamente, o assunto. Das histórias de Walt Disney para o atual cenário das novas tecnologias digitais. Os adeptos de primeira hora das tecnologias aplicadas à educação, encantados com as prestidigitações das crianças e jovens diante das telas, logo descobriram que as crianças são os atuais nativos digitais. Os adultos admiram, pasmos, as superdotadas crianças de 10 meses manipulando com seus dedinhos inocentes as telas de um iPad.
Leia: As diferenças entre fake news, pós-verdade, deepfakes e o papel da escola
Profetizam, então, que seus netos serão os geniais engenheiros do futuro, porque são nativos digitais. Os inocentes “profetas do nativismo” – esses adultos – se esqueceram de três coisas: 1) A aparelhagem digital é que condiciona as crianças às mais primitivas habilidades de aprender: o comportamento condicionado. 2) As crianças, nesse contexto, aprendem como o cão de Pavlov aprendia, com pequenas doses de informação, com suas reações imediatamente reforçadas, com novos e constantes estímulos para obter aprendizagens mecânicas e irrefletidas. 3) Induz-se, controla-se e produz-se – nessas crianças e jovens apressados – o comportamento operante para cada vez mais precisarem das máquinas e de seus novos condicionamentos.
Aquilo que se chama “natividade digital” é, sim, uma relação com o que a civilização colonialista vê como natividade para tudo: inocência, curiosidade ingênua, falta de repertório e de senso crítico, falta de autonomia.
Tais conceitos espelham-se na forma como foram tratados, durante séculos, os indígenas em nosso país. Como se fossem seres infantis e incapazes de tomar seus destinos, de ter autonomia ou direito à posse de suas terras – e tudo o que isso significa. A terra pode ser do garimpeiro, do madeireiro ou do plantador de soja, pois os indígenas são apenas nativos e, como tal, nada sabem e entendem.
Essa visão idílica – mas perversa – de serem os jovens “nativos digitais” esconde, na verdade, que eles devem ser vistos como inocentes digitais. Manipulados digitais, acríticos digitais. Assim, a rapidez, as habilidades comportamentais induzidas pelos softwares embarcados nos jogos e nas instruções de instalação do despertador não são uma virtude intrínseca de uma nova aprendizagem dos jovens, mas o velho mecanismo da programação de comportamento vindo das produtoras centrais do equipamento e da cultura tecnológica.
O entendimento antagônico dos alunos como nativos e o corpo de educadores como paleolíticos digitais não ajuda a esclarecer como funcionam as novas culturas que mediatizam e se tornam objetos do trabalho educativo.
O tema bem complexo será objeto da coluna num próximo mês. Mas posso aqui adiantar que à escola cabe a responsabilidade de desenvolver o seu trabalho histórico de apresentar, criar, duvidar, problematizar e instrumentalizar as gerações para o senso crítico e criativo de melhorar a vida humana para todos. Nada a ver com a inocência digital defendida por aqueles que veem na tecnologia uma forma de nos reduzir a nativos no sentido das histórias do velho mundo colonial de Disney.
*Fernando José de Almeida é professor de pós-graduação em educação: currículo na PUC-SP e foi secretário municipal de Educação da cidade de São Paulo (2001-2002).
Por uma pedagogia das mídias – entrevista com David Buckingham