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Quando o aluno está com o celular ou câmera nas mãos, bem como construindo um roteiro, são muitas as possibilidades pedagógicas. O documentário, inclusive, já faz parte da Olimpíada de Língua Portuguesa
Publicado em 01/11/2021
Quando o aluno está com o celular ou câmera nas mãos, bem como construindo um roteiro, são muitas as possibilidades pedagógicas. O documentário, inclusive, já faz parte da Olimpíada de Língua Portuguesa
Ao possibilitar que usuários de telefone celular consigam produzir, editar e distribuir vídeos, a “revolução digital” em curso no século 21 tem contribuído para a disseminação da produção audiovisual nas escolas. Um dos mais recentes indicativos dessa presença são os números expressivos de inscrições na categoria documentário da Olimpíada de Língua Portuguesa, realizados por alunos do primeiro e segundo ano do ensino médio. Na edição de 2019 foram inscritos 2.432 trabalhos nessa linguagem e este ano, na 7ª edição, 739 – queda gerada possivelmente por conta da pandemia e aulas remotas.
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“Entendemos que trabalhar o gênero documentário com os alunos é uma forma de familiarizá-los com a linguagem audiovisual e de auxiliá-los a desenvolver uma postura mais crítica sobre essa forma de representação do mundo, cada vez mais presente no cotidiano de todos, seja pela TV e cinema, seja pelos vídeos e imagens compartilhados nas telas do celular”, afirma Claudia Petri, coordenadora de implementação regional do Itaú Social, que organiza a Olimpíada e cujos vencedores deste ano serão conhecidos em dezembro.
Além disso, Claudia lembra que “faz parte dos componentes curriculares do ensino de língua portuguesa capacitar o aluno a ler e produzir textos de variados tipos: verbais, não verbais e multimodais”.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), acrescenta ela, “também aborda a importância do trabalho com as práticas contemporâneas de linguagem”. “A facilidade que as atuais tecnologias trazem para a gravação e edição de vídeos permite a produção de documentários de baixo orçamento com certa qualidade.”
A Olimpíada de Língua Portuguesa incluiu pela primeira vez o gênero documentário exclusivamente para alunos do primeiro e segundo ano do ensino médio em 2019. “Ficamos bastante surpresos com o aceite dos professores e estudantes para este desafio proposto”, avalia. “A quantidade de trabalhos e principalmente a qualidade dos conteúdos nos surpreenderam. Tivemos documentários incríveis, trazendo reflexões e histórias de diferentes cantos do Brasil.”
Foi o caso de Nordestinos no Acre, realizado por Eloís Eduardo dos Santos Martins, Raele Brito da Costa e Thomaz Oliveira Bezerra de Menezes, então alunos da Escola Estadual Humberto Soares da Costa, de Rio Branco, AC.
Disponível no YouTube, assim como os demais vencedores de 2019, o curta-metragem aborda, em cinco minutos, as características da migração nordestina para a Região Norte e a sua importância para a história acriana.
“Foi um marco na minha carreira como educadora”, lembra Ynaiara Moura da Silva, professora responsável pelo grupo. “Na época, os alunos estavam no segundo ano. Hoje, estão na faculdade, com ótimo desempenho. Isso é grandioso.”
Nesse ínterim, ela continua a trabalhar documentários com seus alunos, inclusive durante a pandemia. “O que a gente mais via na TV eram documentários sobre os temas mais evidentes do momento, como isolamento social. É enriquecedor. Faz com que o aluno consiga fixar ainda mais os conteúdos e ampliar os conhecimentos.”
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Outro integrante de equipe vencedora em 2019 que manteve até hoje a ligação com a produção documental é Francisco Márcio Pereira da Silva, professor da Escola Estadual Barão de Aracati, em Aracati, CE. Ele coordenou os alunos Bruna Santos Vitalino Almeida, Francisco André Silva de Moura e Lucas Cauã de Lima da Silva na realização do curta-metragem Meu lugar, Ubaranas, também de cinco minutos, e que apresenta, sobretudo, uma comunidade rural da região, remanescente de quilombola e habitada “por gente boa e tranquila” como “Seu Pelé”, que vive ali desde meados dos anos 1970.
“Continuamos colhendo os frutos”, diz Francisco. “Ganhamos respaldo diante da comunidade escolar, do município, dos alunos, e a movimentação do audiovisual na escola continua firme e forte. Mesmo com o ensino remoto, continuamos a fazer a formação básica em audiovisual. Estamos competindo na Olimpíada também neste ano.” Ele acredita que o documentário venha a ser, no cenário da produção de imagens em movimento, “o gênero que mais dialoga com a educação, pelo tipo de abordagem, mais científica, que facilita muito o casamento entre audiovisual e educação”.
O crítico Amir Labaki, fundador e diretor do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, que se firmou como o mais importante festival do gênero na América Latina e realizou sua 26ª edição em 2021, considera “extremamente salutar” que assistir a documentários e fazê-los seja uma prática escolar.
“O mundo contemporâneo é digital. Estamos lidando o tempo inteiro com celulares e computadores, e me parece muito importante que os jovens desenvolvam a aptidão da autoexpressão audiovisual”, defende Amir Labaki.
Ainda que os meios de produção exigidos pelo documentário sejam mais econômicos do que os necessários para realizar ficção, Labaki pensa que ambos representam desafios equivalentes do ponto de vista estético. É preciso tomar cuidado, diz, para não transmitir às novas gerações “o antigo preconceito de que o documentário é essencialmente mais nobre, uma forma mais didática do que a ficção. Documentário é uma forma de autoexpressão tão pessoal como a ficção. Ao mesmo tempo que se introduz os jovens à prática documental, seria também importante introduzi-los à estética do documentário”, de modo a compreendê-lo “como forma artística autônoma”.
Aliar o estímulo à produção com a apresentação da diversidade estética do audiovisual corresponde, a saber, ao eixo de conteúdo de inúmeras oficinas de realização espalhadas pelo país, em escolas e fora delas, boa parte frequentada por adolescentes e jovens de regiões periféricas. É o caso das Oficinas Kinoforum de Realização Audiovisual, criadas como projeto do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, que chegou em 2021 à sua 32ª edição. O principal objetivo é “despertar o interesse e proporcionar o acesso à fruição e à criação de filmes”.
Em julho deste ano, as Oficinas Kinoforum completaram 20 anos de atividades. Para celebrar a data, foi lançado o longa-metragem Sobre Olhares – Oficinas Kinoforum, reunindo 12 curtas feitos por jovens moradores das periferias e comunidades da cidade de São Paulo. São documentários e filmes de ficção que tratam de assuntos escolhidos pelos próprios jovens a partir do que identificam como temas urgentes em seu cotidiano, como a falta de perspectiva de trabalho, o racismo estrutural, o direito à moradia e ao saneamento básico, homofobia e transfobia.
Aliás, os cerca de 300 vídeos realizados nesses 20 anos, com a participação de aproximadamente 1.800 jovens, podem ser vistos no site da Kinoforum e no canal das Oficinas no YouTube. A produtora Zita Carvalhosa, criadora e diretora do Festival de Curtas e das Oficinas Kinoforum, ressalta que “o domínio criativo, de conteúdo, aplicado à ferramenta audiovisual é a coisa mais importante do mundo”. Isso deveria ser, na sua avaliação, “disciplina na escola, ou então um conteúdo transversal”.
Zita observa que os modelos com os quais as Oficinas Kinoforum vêm trabalhando, ao investir na “alfabetização audiovisual” e na transformação de jovens em “sujeitos da própria história”, conscientes de que “tudo a que você assiste é um discurso construído”, têm características para serem, por exemplo, “replicáveis” e “integrados ao fazer da escola”. Um dos modelos em desenvolvimento é o de uma oficina voltada para empreendedorismo e gestão audiovisual, que pretende contribuir para “o desenvolvimento de coletivos, grupos, produtoras, distribuidoras e outras formas de organização social”.
Em outra ponta do projeto, que se encontra em fase de reestruturação para que a “face pedagógica” ganhe mais visibilidade, as Oficinas planejam se voltar para um público “que interessa muito”, segundo Zita: o infantil. Durante a edição deste ano do Festival de Curtas, foi realizada uma oficina em Itapevi, SP, com crianças de até nove anos. “Acredito que o futuro seja esse”, afirma. “Se estiverem bem formadas em audiovisual, teremos menos fake news, por exemplo.”
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