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A identidade de alguns alunos dentro da turma, como o mais falante e aquele mais popular, se perdeu no ambiente virtual – resultado de meses sem aulas presenciais em decorrência da pandemia. Moisés Domingues, diretor de ensino do Colégio Miguel de Cervantes, SP, que só […]
Publicado em 25/11/2021
A identidade de alguns alunos dentro da turma, como o mais falante e aquele mais popular, se perdeu no ambiente virtual – resultado de meses sem aulas presenciais em decorrência da pandemia. Moisés Domingues, diretor de ensino do Colégio Miguel de Cervantes, SP, que só voltou com as aulas 100% presenciais em setembro deste ano, conta que remotamente os relacionamentos foram reconfigurados.
Segundo ele, foi um desafio criar um ambiente de convivência online e agora está sendo trabalhoso reconstituir essa identidade perdida. Mas o trabalho atento de toda a equipe escolar foi fundamental para notar esse desequilíbrio e apoiar os estudantes. O grupo de afetos foi uma das respostas do colégio e atuou por meio de palestras e encontros virtuais fora da grade curricular para os alunos, por meio de conversas sobre feição e afeto, se sentirem acolhidos e se reconectarem.
Esse trabalho de resgatar o vínculo dos jovens com o seu grupo partiu dos tutores, que perceberam o que estava acontecendo com suas turmas e repassaram à equipe de orientadores educacionais.
“Se a tutoria era valiosa em tempos de alunos presentes no colégio, ela se tornou a chance de se fazer escola remotamente. Toda a vida remota de alunos com câmeras fechadas, não querendo conversar, trancafiados em casa, sofrendo perdas, tinha também um momento da semana de ser enfrentada coletivamente. Tutoria é trabalho coletivo, questões são individualizadas, tutor tem tempo de conversas com o aluno e família, mas há sempre momentos coletivos”, detalha Moisés Domingues, o qual acrescenta que a tutoria durante esse período atípico foi o momento de contato com a realidade não da aula, mas com a realidade desse aluno dentro da casa, isolado do convívio com os colegas. Moisés também define a tutoria como aquele conhecido currículo oculto, mas que já não pode ser ocultado.
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O Miguel de Cervantes, colégio da elite paulistana, concebido na década de 60 por espanhóis radicados em São Paulo, diz que olha o aluno para além do conteúdo e entre sua essência está a tutoria, presente no regimento escolar – ela faz parte da grade curricular, só que os assuntos fogem do acadêmico, sendo o momento de o professor tutor com seus alunos discutirem, por exemplo, a realidade enfrentada naquele momento.
Atualmente são 1.691 alunos do ensino infantil ao médio, divididos em 61 turmas e, consequentemente, 61 tutores. Cada classe possui o seu tutor, que pode ser o professor de matemática, artes, história ou geografia, e que realiza um encontro semanal com os alunos. Domingues resume a carga horária do tutor da seguinte forma: “20% da carga de tutoria é com alunos e 80% refletindo com a sua equipe de tutores, orientação e atendendo as famílias, porque ele é o primeiro ponto de contato, o mais próximo da realidade do aluno/filho com o colégio. Então a mãe quando vem falar do filho é o tutor que fala sobre ele”.
Ou seja, a tutoria é um trabalho pensado pela instituição como atividade coletiva, com formação, suporte e plano de ação, e não é colocada como uma tarefa individual e sem qualquer base de apoio. Em média, a cada 10 tutores, há um orientador educacional coordenando. Sem contar a orientação de outros profissionais, quando necessário, como psicopedagogo, psicólogo, equipes externas de suporte sobre conteúdo específico, por exemplo, da psicologia, medicina. “Tutor não pode enfrentar uma situação isoladamente”, enfatiza o diretor de ensino.
Aliás, outra peculiaridade do Miguel de Cervantes é que os alunos não passam de ano com base apenas no desempenho acadêmico oriundo de uma prova. Há um modelo de avaliação por atitudes e comportamento, voltado à prontidão, entrega de trabalho, participação na aula, cuidado em compartilhar o que sabe. E o tutor é o responsável por apresentar no conselho de classe esse leque, pautado em seus acompanhamentos e anotações ao longo do ano. “Esse profissional tem informações que possivelmente ajudarão a interpretar o que aconteceu com aquele estudante durante o ano, muito além do que cada professor verificou na sua avaliação acadêmica”, defende Moisés.
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Se as aulas presenciais permanecerem em 2022 – a depender da situação pandêmica -, a equipe escolar do Cervantes vem se preparando para enfrentar traumas e perdas. “Hoje estamos descobrindo que as perdas ainda não foram realizadas, porque estamos na transição para o presencial. Na nossa forma de acompanhar os alunos, os tutores e a orientação educacional têm percebido que eles ainda não realizaram coletivamente as perdas que vivenciaram. Nada neste mês se trata de rotina, ainda não estamos na rotina. Nós, adultos, sabemos que quando temos alguma perda, trauma, na transição lidamos bem aparentemente, porque é só na rotina que a gente revela o que perdeu. Então, quando as aulas começarem e esse aluno entender que todo dia tem aula, que a vida presencial voltou depois de um, dois, três meses de rotina escolar, se não estivermos preparados, vamos ter muitas dificuldades”, decreta o diretor de ensino.
Voltando ao desafio relatado no início da reportagem, os grupos, segundo Moisés, se desmancharam, a autoimagem se perdeu, a própria identidade coletiva vai ser reconfigurada – ainda não foi porque eles estão se apresentando agora, estão voltando. “É bem provável que 2022 seja de enfrentamento das perdas a partir da constatação e da volta da realidade do que os alunos ainda não viveram. No meu ponto de vista será muito trabalho e nosso tema do ano que vem será o de viver a rotina do retorno e viver o retorno após a rotina. Voltar ainda tem festa, a rotina não tem festa e as perdas vão se revelar”, finaliza Moisés Domingues.
A Rede de Ensino Apogeu, com 21 unidades em Minas Gerais e três no Rio de Janeiro, não possui tutoria, mas oferece na grade curricular monitoria e orientação pedagógica. O primeiro foca o estudo, faz plantão para tirar dúvida do aluno sobre determinado conteúdo, já a orientação trabalha o processo de aprendizagem do estudante para ele se tornar cada vez mais autônomo e se desenvolver no estudo.
O momento de fugir de assuntos acadêmicos e se voltar, por exemplo, para o socioemocional também está presente na grade, foi implementado em 2016 e acontece uma vez por semana da educação infantil ao médio. “Quando trabalhamos a questão socioemocional com o ensino médio, por exemplo, focamos o protagonismo, discutimos angústia, felicidade e conquistas para o aluno entender que a família e amigos podem ter empatia por ele, mas que viver e sentir sua própria vida faz parte dele e não dos outros. Também falamos de crenças limitantes, romper barreiras, autoconhecimento, questão de bullying”, explica Lucas Monteiro, vice-diretor pedagógico da unidade Santo Antônio II, MG, e coordenador do segmento ensino médio e cursos livres da rede.
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Há, inclusive, um material para desenvolver esses temas com os alunos que inclui histórias de pessoas com sonhos não convencionais, como o pianista cego Luiz Otávio. Na pandemia, esse apoio socioemocional tem sido essencial, uma vez que os alunos, principalmente no início, estavam instáveis emocionalmente (a escola também possui suporte psicológico). “Com toda a nossa estrutura socioemocional, demos apoio importante para o aluno e família na pandemia assimilarem os processos, dando um momento de colocarem para fora o que estava acontecendo, discutirem os impactos e como superar esses problemas”, conta Lucas.
O vice-diretor acrescenta que a orientação pedagógica no Apogeu existe há mais de 10 anos e que já passou por diversos modelos, como terceirizar o serviço via empresa especializada em orientação pedagógica. Hoje os professores são os orientadores, “porque o professor é o agente que mais estuda dentro da nossa estrutura. Então é a melhor pessoa para ensinar o aluno a estudar e mais importante do que ensinar o conteúdo é ensinar o aluno a aprender”, pontua.
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