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No Brasil, dos 593 mil docentes que atuam na educação infantil, apenas 3,6% são homens, segundo o Censo da Educação Básica 2020. Esse índice vai se ampliando a partir dos anos finais e ensino médio; já no ensino superior a presença masculina é maioria. Nos países […]
Publicado em 25/02/2022
No Brasil, dos 593 mil docentes que atuam na educação infantil, apenas 3,6% são homens, segundo o Censo da Educação Básica 2020. Esse índice vai se ampliando a partir dos anos finais e ensino médio; já no ensino superior a presença masculina é maioria.
Nos países africanos há uma pirâmide completamente inversa: na educação básica a maioria dos professores é do sexo masculino – o mesmo ocorre no Japão. Em Moçambique, as mulheres ocupam cargos nas áreas de exatas, agrimensura, matemática, zootecnia, agronomia e os homens estão no magistério. Na Europa, Portugal e Espanha são duas grandes referências de professores do sexo masculino na alfabetização e na educação infantil. É senso comum pensar que isso retrata a questão cultural do Brasil, mas há também um tema delicado, o de gênero, sobre o qual ninguém fala.
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A função da educação infantil na sociedade contemporânea é a de possibilitar a vivência em comunidade, praticar o respeito, acolhimento, inclusão e diversidade. Embora sejamos biologicamente sociais, é o convívio que nos ensina formas de nos relacionar. Essa é a grande tarefa da educação na primeira infância.
O obstáculo para o homem entrar na educação infantil está numa sociedade que não enxerga esse papel como masculino, uma vez que cuidar é atribuição da mulher e a escola tende a não fazer nenhum trabalho para diminuir isso, deixando o professor fragilizado.
De acordo com Geraldo Peçanha de Almeida, pedagogo pela Universidade Estadual Paulista de São Paulo (Unesp), quando um homem consegue romper essa barreira e entrar numa escola de educação infantil, ele não encontra pares. “Toda professora passa pela situação de uma criança que é mordida por outra, de um aluno que empurra o colega que cai e fere a cabeça, mas, se acontece na classe do professor homem, a causa é vista como desleixo e incompetência”, ilustra Geraldo, que atuou durante nove anos na educação infantil da rede particular e pública na cidade de Curitiba, Paraná.
Segundo ele, as próprias colegas de trabalho olham para o professor do sexo masculino como incapaz de cuidar, portanto, de exercer a maternidade. A cobrança e a vigilância em cima do homem que entra na educação infantil são muito maiores, complementa Geraldo.
Grande parte das escolas considera a educação na primeira infância como um prolongamento da casa, da mãe, ou seja, um prolongamento da maternidade. Geraldo expõe que uma docente mulher pode auxiliar uma criança pequena no banheiro, mas um professor homem não pode. “Uma professora pode dar banho nos alunos, um pediatra pode examinar tanto meninos quanto meninas, mas um professor homem de educação infantil gera desconfiança no cuidado com as crianças”, explica.
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Homens chegam a entrar na educação infantil, mas episódios de desconfiança, acusações e reuniões com as famílias e responsáveis para esclarecimentos, muitas vezes sem nenhum sentido, causam um desgaste tão grande que o professor desiste e sai da escola. “Eu precisava fazer um esforço extraordinário para ter um reconhecimento”, admite Geraldo, que também é psicanalista e doutor em teoria literária. Ele conta que um colega o procurou para contar que como professor da educação infantil fora proibido de, no horário do sono das crianças, permanecer na sala junto delas. Nesse momento seria designada uma professora mulher para supervisionar as crianças. Para Geraldo isso é violência laboral, onde o contexto de trabalho para o homem na educação infantil é cruel.
“Dirigentes têm cobranças de todos os lados: uma diretora de pré-escola é cobrada por vaga, por criança que precisa tomar medicação num determinado horário, por uma criança que cai e se machuca, até pela criança que não fala direito. Mas quando uma família traz à escola inseguranças quanto à intimidade, sexualidade, afeto, carinho e até sobre a educação dada por uma figura masculina, a direção da escola se mostra frágil, despreparada e não entende o real papel da educação”, aponta o professor.
Para Geraldo, também autor de mais de 70 livros, entre infantis, para pais e educadores, a educação é feita na multiplicidade: quanto mais diversificadas forem as linguagens, as relações e as convivências, maior é o ganho das crianças, em termos de relações humanas, equilíbrio emocional e referências. “Colocar uma criança durante quatro anos só diante de educadoras mulheres, cuidadoras, assistentes femininas, por preconceito, é privar a criança de um direito que está garantido na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que é o de conviver”, explica.
Ele conta que há cinco anos Curitiba introduziu três professoras trans na educação infantil: houve aceitação da escola, em seguida reuniões com os pais para esclarecer dúvidas e anular preocupações. Criaram-se momentos de discussão e convivência entre familiares e professores. “Nessa experiência de Curitiba, a maior resistência foi por questões religiosas; pais conservadores apresentaram dificuldade, mas não impedimentos. Isso mostrou que se o trabalho realmente é feito com responsabilidade, não só o homem tem espaço na escola, como também qualquer outra pessoa”, assinala Geraldo Peçanha.
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A Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a BNCC pregam o cuidar e o educar, papel indissociável na educação infantil. Os professores de artes, de inglês, de informática, de música e de educação física educam dentro dos princípios de suas próprias disciplinas, mas é o professor regente que, além de educar, cuida, faz trocas de roupas, de fraldas, alimenta, é quem desenvolve um papel maternal.
Peçanha vê como saída a introdução da presença masculina na educação infantil de maneira gradativa, como aconteceu com ele, que teve sua primeira experiência como professor substituto. “Cada vez que faltava uma professora, ao invés de a escola colocar uma assistente no lugar, havia um homem que já convivia dentro da escola, ao longo da semana, de maneira coadjuvante: no lanche, higiene e organização do material. Quando a professora faltava, ele assumia”, orienta. “Para os pais é positivo, pois são impactados de maneira mais leve.”
Quando há professores homens e mulheres juntos na primeira infância, exercendo o cuidar, o afeto e o acolhimento, planejando aulas e organizando atividades, mostram-se às crianças diversas possibilidades de família. Quando uma escola é 100% feminina, a criança passa cinco vezes por semana, às vezes 8 horas por dia, com uma única referência, muitas vezes por preconceito, dificuldade e desinformação.
Lion Santiago, pedagogo pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) foi professor da educação infantil da rede pública na cidade de Guarulhos, SP, onde o corpo docente era composto apenas por mulheres, com exceção das aulas de educação física e em alguns cargos na área de gestão. Lion acredita que a escola reflete a cultura machista da sociedade, que determina que este é o espaço da mulher, e enfatiza que a presença masculina na educação não deve representar os mesmos estereótipos vistos na sociedade.
“Há cada vez mais lares onde as crianças crescem sem referências masculinas e não podemos permitir que dentro das escolas essa referência apareça reproduzindo os mesmos arquétipos da sociedade”, frisa Lion, mestre em literatura e crítica literária na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Quando na escola há uma gestão que entende a importância da figura masculina para transformar as relações de masculinidade dentro da infância, então ela traz professores homens para sua equipe de docentes.
“Vemos uma presença masculina na educação infantil de escolas sob uma perspectiva construtivista, que se pensa além do que é comum. Já na escola tradicional, a presença é quase inexistente”, assegura Lion, que também atuou como professor na educação infantil em escolas particulares na cidade de São Paulo. Filho de mãe solo, Lion teve referências masculinas dentro de seu percurso escolar e conclui que se não houver, também, mulheres que desconstruam esses arquétipos machistas e preconceituosos, elas os reproduzirão dentro da sala de aula, assim como sua mãe, que negava que fizesse alguns serviços domésticos sem que ele entendesse a razão.
Há escolas que possuem dentro de seu espaço um modelo de desconstrução em que se vê jovens fortemente armados contra racismo, preconceito e machismo, por exemplo, porque tiveram um percurso educacional que os transformou para fazer frente a esse tipo de ação. “Existe uma luta para os homens ocuparem espaço na educação infantil, mas o principal é direcionar a forma de ocupar esses espaços”, discorre Lion, também editor da AMELÌ, mediador de leitura e formador de professores.
A diretora educacional Ruth Nassiff teve vivências positivas com a contratação de professores homens para a educação infantil do Instituto Alana, na capital de São Paulo. “Os currículos masculinos eram muito bem-vindos e avaliávamos a contratação de homens para a primeira infância como uma experiência atraente”, conta Ruth, que é psicopedagoga clínica e institucional pelo Instituto Sedes Sapientiae. Ela notava um manejo interessante em sala de aula e avalia que o receio das pessoas é por preconceito, já que o homem também consegue ser dócil, acolhedor e firme dentro da ação pedagógica. “Vemos mulheres ríspidas e agressivas com crianças, então, o ser masculino ou feminino não é o que determina o sucesso em sala de aula”, pondera Ruth, pós-graduada em neurociência, psicanálise e docência do ensino superior.
“Um dos professores contratados despertou minha atenção pela organização e planejamento. Possuía semanários com atividades e conteúdos que iria aplicar, trabalhou a questão de um menino mais agressivo dentro do grupo com muita dedicação e cautela e o aprendizado de seus alunos caminhou muito bem”, detalha. Ruth conta que outro docente contratado tinha uma personalidade mais expansiva, usava brincadeiras nas atividades, explorava as cantigas de roda, um jeito diferente que também funcionou muito bem com crianças de cinco anos.
“Eu atendia muitas turmas, cerca de 250 crianças, e o trabalho pedagógico desses homens em sala de aula aconteceu tão bem quanto nas salas de aula de professoras femininas”, relata. Segundo Ruth Nassiff, a aceitação das famílias foi tranquila, sem qualquer questionamento. “As crianças adoram quando a figura masculina aparece nos professores especialistas a partir do ensino fundamental 2, e muitas se dão melhor com os professores do que com as professoras”, opina.
A receptividade depende mais de como a instituição percebe a condição do homem professor na educação infantil do que da comunidade. Ruth assegura que quando a equipe gestora faz um trabalho de aceitação e inclui esses professores como capazes e competentes, como é feito com uma professora mulher, o movimento é relacional, e a aceitação da escola impacta a todos.
O homem na escola ajuda no equilíbrio do masculino e do feminino, com seu olhar, compreensão e escuta, que são diferentes. Se as mulheres lutaram, e lutam ainda, para romper com o modelo único de família e a fixidez do lugar social a elas determinado, foi a partilha da educação das crianças com a escola que pôde tornar viáveis novas configurações e organizações familiares. A igualdade dos direitos entre homens e mulheres na sociedade só poderá se consolidar se as instituições sociais tiverem novas significações.
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