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Formar cidadãos críticos das tecnologias

Nossa conversa de hoje nasceu das páginas de outubro de 2021 desta revista Educação. Falávamos, então, de como as novas gerações se engajaram de forma inocente no mundo de consumo dos ambientes digitais como se ele fosse um paraíso de horizontes criativos e libertadores para […]

Publicado em 08/06/2022

por Fernando José de Almeida

Nossa conversa de hoje nasceu das páginas de outubro de 2021 desta revista Educação. Falávamos, então, de como as novas gerações se engajaram de forma inocente no mundo de consumo dos ambientes digitais como se ele fosse um paraíso de horizontes criativos e libertadores para a garotada no século 21. As tecnologias digitais, entrando no mundo infantil pelos jogos e instrumentos de microeletrônica, fariam dos bebês e até dos adolescen­tes uma nova geração de seres bem-aventurados e libertos das agruras dos estudos e do isolamento. Promessas de rapidez e facilidade para obter os seus desígnios. Um admirável mundo novo com suas ofertas de redes de conhecimento, de união dos povos, de lazer criativo apresenta-se às nossas portas, e ainda mais, com custo perto do zero. Basta que lhe sejamos dóceis, disruptivos e dispostos a usá-lo em todas as dimensões do cotidiano e até em nossos projetos de futuro.

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Leia: Tecnologia digital não é ferramenta, mas linguagem

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O que precisa ser esclarecido na dimensão de seu uso para a educação? 

O mundo desenvolvido a partir do Vale do Silício não é neutro e tem suas artimanhas que nunca se esgotam e são para nós um desafio constante: decifra-me ou devoro-te! Vamos a uma dessas artimanhas: o desafio de compreender sua dimensão virtual. 

O mundo digital é, sobretudo, um mundo de produtos virtuais. Do ainda não. Do poder ser. Da potencialidade. Só para lembrar: a ‘potência’ e a ‘virtualidade’, no sentido filosófico, significam “aquilo que não é, mas pode vir a ser, tem possibilidade de” ….

Uma laranja é. Ela existe. Posso vê-la, tocá-la, medi-la. Ela tem cheiro e gosto. Um caroço de laranja não é uma laranja, mas tem possibilidade de ser laranja ou até de produzir uma laranjeira que frutifique, durante anos, milhares de laranjas. Mas o caroço não é uma laranja. É uma laranja em potência. Pode-se dizer uma laranja em ‘virtude’. Uma laranja virtual. Mas a fruta virtual não alimenta, não tem cheiro, não apodrece, nem morre. Enfim, não tem vida pois não é real. Não existe (ainda). Pode vir a existir. É uma espécie de apartamento na planta.

O que permite que um ser virtual se torne real é o movimento. A passagem da potência ao ser se dá pelo movimento. O movimento é dado por uma causa externa que viabiliza ao ‘ser em potência’ sua realização concreta. Se compararmos a um fenômeno físico, podemos dizer que a água de uma caixa d’água a 20 metros do solo, com 10 mil litros, tem uma força potencial para gerar energia. Estamos dizendo que ela ‘pode’ gerar. É energia potencial. O que faz que a quantidade de energia acumulada – nos tantos litros da caixa – de fato faça girar uma turbina ou produza um jato para regar um jardim é o movimento de sua descida até chegar ao estado de repouso (o fim da água na caixa ou o fechamento da torneira). O movimento que permite que o potencial acumulado de água se torne energia elétrica é dado pelo girar das pás das turbinas de uma usina. 

Assim também, o potencial de informações acumulado num software educativo só se torna ‘realidade’ com um processo de movimentos que são construídos por mediações pedagógicas. Tais mediações mobilizam os estudantes de seu estado de latência (ou potência) para as ações exigidas para a aprendizagem. O processo de passagem da potência ao ato da aprendizagem é uma atividade pedagógica intencional, planejada, que tem metodologias, avaliações de acompanhamentos, e não apenas um mecanismo espontâneo e autômato. 

Falamos aqui da aprendizagem escolar, orgânica, civilizatória, cidadã e fruto de projeto de coesão social – no caso do Brasil, de preceitos de nossa Constituição Federal, em seus artigos 1º e 205º. 

A criança que se fascina pelas luminosidades, ou o adolescente que vê um livro de Machado de Assis que pode ser explicado em 15 minutos em um softwa­re, ou por uma palestra relâmpago ou em um videoclipe, não tem a possibilidade de viver uma leitura atenciosa, comentada, participada com outros seres presentes e reais que constituem a vida. Rabiscos, diálogos, incertezas, contradições, contraexemplos, visões interdisciplinares. 

A vida não se vive apenas como uma potência, mas como risco, perdas, convívio com o outro, agruras, paladares, frios, acalantos, ternuras, cafunés, enxaquecas, tremores, responsabilidades, ócios e negócios. 

Nada disso é virtual. Os amigos são reais, os filhos são reais, a morte é real. É real o arroz, como o tijolo que sustenta a casa, como a água que pode acabar realmente e a guerra que pode chegar a cada um de nós. 

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Leia: Linguagens do hip-hop como didáticas de letramentos

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O ser é e o não ser não é.

Coisas assim para nos ajudar a pensar em como o tal ‘nativo digital’ precisa ficar esperto para não ser apenas um inocente útil dentro de um projeto fascinante de ‘smart society’, mas um projeto de vida pouco humano.

Cabe ao educador, formal ou não formal – aos pais, à sociedade toda –, desnaturalizar o tal encantamento original que as mídias eletrônicas causam sobre o ser curioso e encantado que é a criança e o jovem. A tarefa da educação é exatamente de abrir na alma das crianças e das novas gerações a curiosidade, a atenção, a concentração, a valorização de dimensões sociais, da solidariedade, da compaixão e da busca da sua identidade, o encantamento, a indignação para além dos mecanismos do consumo e isolamento individualistas. A escola é um lugar importante nesse processo. Viva a escola!

*Fernando José de Almeida é professor de pós-graduação em educação: currículo na PUC-SP e foi secretário municipal de Educação da cidade de São Paulo (2001-2002).

Leia também:

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Fernando José de Almeida


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