NOTÍCIA
Na escola em tempo integral Centro de Excelência Dr. Milton Dortas, na cidade de Simão Dias, centro-sul sergipano, aos 17 anos, o aluno Gabriel de Jesus Santos está acostumado à rotina democrática: participa de um grêmio que trabalha fortemente questões como direitos sociais e respeito […]
Publicado em 30/08/2022
Na escola em tempo integral Centro de Excelência Dr. Milton Dortas, na cidade de Simão Dias, centro-sul sergipano, aos 17 anos, o aluno Gabriel de Jesus Santos está acostumado à rotina democrática: participa de um grêmio que trabalha fortemente questões como direitos sociais e respeito à diversidade, com eleições diretas a cada dois anos, seguindo todo o rito do voto secreto. Aluno do 2º ano do ensino médio, também organiza rodas de conversa com a direção e com os alunos, para dialogar e entender o que pensam. É um dos 2.042.817 novos eleitores, com idade entre 16 e 17 anos, que depositarão seus votos nas urnas para as eleições de 2022.
Gabriel sente-se preparado para essa responsabilidade. “Aprendi a exercer meu direito de cidadania, sabendo que avaliar propostas é melhor que acreditar em promessas.”
Infelizmente, isso não é verdade para boa parte dos jovens, que em outubro votarão pela primeira vez. Pouco habituados a escolhas em suas escolas – onde não decidem sequer se podem usar chinelos ou tênis –, e acompanhando em casa discussões políticas sem pé nem cabeça que arrasam famílias e amizades, os jovens cresceram em um ambiente em que se confunde política com criminalidade, educação com ideologia, professores com doutrinadores, e valores democráticos com usos e costumes individuais.
Esse retrato confuso e complexo pode ser desenhado em números. Conforme pesquisa divulgada em julho pelo Instituto DataFolha, sob encomenda das organizações sociais Cenpec e Ação Educativa, 56% dos brasileiros pensam que os professores não devem falar sobre política em sala de aula. Outros 54% acreditam que os pais podem, sim, proibir a escola de ensinar sobre temas que não considerem adequados.
É um cenário preocupante – e seria ainda mais se não trouxesse um dado aparentemente contraditório. Ao mesmo tempo que condenam abordagens educativas da política, 90% dos entrevistados também acreditam que a escola deve falar sobre pobreza, desigualdade e todas as formas de preconceito. Mas, isso não seria justamente falar de política?
Desse ambiente complexo faz parte, finalmente, o ainda mal compreendido impacto das redes sociais. Se no início do ano o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estava alarmado com o baixíssimo interesse dos jovens pela emissão do título de eleitor, o prazo determinado para 4 de abril terminou com o maior número de eleitores nessa faixa etária em duas décadas. Obra da conscientização das escolas e dos pais? Nada disso: Anitta, Zeca Pagodinho, Bruna Marquezine e até estrangeiros como Leonardo DiCaprio e Mark Ruffalo mobilizaram a garotada pelas redes sociais. Mas, se os influenciadores podem ser fundamentais para atingir as novas gerações, não se pode delegar a eles a formação para a vida cidadã. Até porque, pelas veias das mesmas redes sociais que engajam novas gerações, também circula o veneno das fake news e da desinformação.
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Leia: As diferenças entre fake news, pós-verdade, deepfakes e o papel da escola
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Para a historiadora Kamila Nunes da Silva, gestora do Núcleo de Educação Básica da organização social Politize!, tudo se explica pela incompreensão do que vem a ser conhecimento político. “Política vai muito além de processo eleitoral, campanhas e escolha desse ou daquele candidato. É sobre direitos e deveres, sobre participação na cidadania”, lembra. Para ela, essa visão também é impactada pela criminalização que marcou a atividade partidária e pela polarização que divide a sociedade. “Quando se toca na palavra política, a pessoa já arrepia”, lembra. Por isso, em sua avaliação, ao mesmo tempo que se nota interesse pelo tema na sociedade, há receio.
E é justamente nesse campo que atua a Politize!, organização criada em 2013, ano em que milhões de pessoas foram às ruas em protesto, justamente para pensar como discutir política com o cidadão comum, de forma didática e suprapartidária, informando sobre conceitos básicos, desmistificando temas polêmicos, sempre em linguagem simples, por diferentes mídias, de fácil consulta e entendimento.
Prova do interesse demonstrado pelo tema é a própria atividade da Politize!, que tem um braço no campo da educação. Hoje, a entidade possui um programa específico para o ensino médio, denominado Escola da Cidadania Ativa, no qual apoia secretarias de Educação com formação de professores, oferta de eletivas, uma trilha de aprofundamento com 900 horas e recursos pedagógicos. Acre, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Mato Grosso, Roraima, São Paulo e Sergipe já participam do programa, e outros devem entrar em breve. Apenas o projeto Eletivas alcançou 1,3 mil professores e mais de 60 mil alunos nos últimos dois anos.
Entre as propostas da Politize! está a formação direta para os alunos, em cursos de liderança e modelos de replicação, como os “embaixadores”.
Entre os 237 alunos formados em 2021 está o baiano Rodrigo Nascimento, de 28 anos, que acaba de se graduar no curso técnico profissional de administração no Colégio Estadual Mandinho de Souza Almeida, no Recôncavo Baiano. Rodrigo se orgulha por ter estudado em uma escola que valoriza o protagonismo dos alunos. Antes mesmo que se iniciasse a movimentação para estimular os jovens a tirarem seus títulos de eleitor, em 2022, os alunos da sua escola se motivaram para lançar o Título na Mão, chamando os adolescentes para o direito ao voto.
“Sou muito fã da política, gosto, vivencio. Precisamos fazer a discussão nas nossas escolas porque é o ambiente de conhecimento, e também do conhecimento político”, acredita Rodrigo.
Para ele, é essencial que todo jovem conheça o projeto político-pedagógico e o regimento da escola onde estuda, bem como documentos essenciais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases e outros. “Ninguém virá falar espontaneamente para apresentar nossos direitos, só nossos deveres”, diz.
Mas há algo mais sobre a importância da política, além do necessário aprendizado sobre o exercício da cidadania. Os jovens oxigenam a sociedade, trazem uma visão do futuro, as demandas do hoje e do amanhã.
“Precisamos novamente olhar para a política como um caminho de transformação”, acredita
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Leia: Falta de incentivo nas escolas contribui para o desinteresse dos estudantes com a política
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Rozana Barroso, que acaba de concluir o ensino médio profissional na Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro, na área de análises clínicas. Agora, aos 23 anos, cursando direito em São Paulo no Centro Universitário Zumbi dos Palmares, Rozana foi o primeiro membro de sua família a chegar ao ensino superior, e acaba de deixar a presidência da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes).
Para ela, o desejo dos adolescentes de saber mais sobre política vem superando o medo que a sociedade tem de jovens engajados, mas há muito a caminhar. Para a ex-presidente da Ubes, a política não pode ser criminalizada e deve ser tema principal da escola. “É a discussão mais importante que temos de fazer: política e escola têm tudo a ver, um match perfeito”, acredita.
O aluno Gustavo Henrique, de 18 anos, de Itamaraju, BA, concorda. “Por mais que o jovem entenda a importância da política, ela é hoje, pra ele, um espaço institucional muito envelhecido, que abre poucas oportunidades para que ele se manifeste, e que não o representa”, reforça. Em outras palavras, significa dizer que os jovens veem a política não como um espaço de soluções, mas como a própria origem dos problemas.
“É necessário que a política seja uma prática nas escolas, considerando o respeito às diferenças e a redução da desigualdade”, acredita Gustavo.
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“Política faz parte da vida, e o que é parte da vida precisa ser tratado na escola.” Dessa forma, simples assim, o pesquisador Romualdo Portela define a importância de se abordar os temas políticos na educação. Não é preciso sequer evocar a tão vilipendiada memória de Paulo Freire para lembrar que política e educação não se separam. Diretor de pesquisa e avaliação do Cenpec, pós-doutorado na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, Romualdo lembra que o estadunidense John Dewey – uma das mais importantes referências da pedagogia – há um século já lembrava que a escola é um microcosmo onde os alunos devem viver a experiência da vida democrática.
Calma lá, trazer a política para a escola não significa promover o proselitismo, mas proporcionar aos alunos e alunas a oportunidade de conhecer as diversas faces de uma questão, cotejar pontos de vista, enfim, construir o conhecimento necessário para pensar criticamente, se posicionar, fazer escolhas, argumentar.
“A doutrinação só tem espaço onde não há diferentes pontos de vista, quando predomina o pensamento unilateral”, lembra Portela. Ele cita, por exemplo, as aulas de história, em que temas como Inconfidência Mineira são importantes oportunidades para explorar a fundo como diferentes atores viam o mesmo processo histórico – que para os inconfidentes era uma luta por direitos à liberdade, e para a coroa portuguesa, uma insurreição. “Há sempre diferentes pontos de vista para cada fato”, lembra.
Por isso, também, não bastam boas explicações. É preciso ensinar os alunos a debater, a ouvir o ponto de vista do outro e a expressar seus próprios argumentos, com respeito e civilidade. Para Romualdo Portela, interditar o debate na escola implica privar os alunos de uma reflexão mais crítica sobre o mundo.
“Acho que é preciso mesmo recuperar um certo espírito do Iluminismo, na medida em que a interação, a discussão de ideias, o diálogo permitem a melhoria do conhecimento coletivo sobre temas que, afinal, dizem respeito a todos nós”, finaliza.
Os futuros da educação segundo a Unesco