NOTÍCIA
Aos 17 anos, a estudante Maria Elenilza dos Santos Gonçalves aprendeu, na Escola Municipal Quilombola Águas do Velho Chico, em Pernambuco, conteúdos previstos no currículo na área de matemática, língua portuguesa e demais disciplinas, como os alunos de sua idade, nessa etapa escolar. Mas foi […]
Publicado em 23/01/2023
Aos 17 anos, a estudante Maria Elenilza dos Santos Gonçalves aprendeu, na Escola Municipal Quilombola Águas do Velho Chico, em Pernambuco, conteúdos previstos no currículo na área de matemática, língua portuguesa e demais disciplinas, como os alunos de sua idade, nessa etapa escolar. Mas foi além. “Conheci a nossa ancestralidade, as histórias das mulheres e homens guerreiros nos quilombos do Brasil, como Zumbi, Ganga Zumba, Dandara, Tereza de Benguela, Aqualtune, Anastácia…”, lembra Elenilza. Entre os projetos de que se recorda, estão pesquisas sobre ervas medicinais, receitas dos seus antepassados, histórias populares. Aprendeu danças afro, a utilizar instrumentos como o atabaque e compôs cordéis.
“Eu me apropriei mais da cultura local como protagonista da minha identidade de mulher negra e quilombola”, define.
Aluna de uma das 2,5 mil escolas em áreas remanescentes de quilombos, Elenilza teve uma oportunidade rara para jovens de sua idade, no Brasil – conhecer suas raízes e aprender a valorizá-las em uma relação horizontal com as demais culturas com as quais convive. Em um planeta que clama pela valorização da diversidade em todos os níveis, a educação tem um papel ao qual não pode se furtar, e se torna cada vez mais urgente no Brasil e no mundo.
Para quem nunca pensou nesse assunto, é bom ficar atento. É um movimento global, está na base de reformas curriculares complexas e olha para o futuro. Em países como o Canadá, Finlândia, Nova Zelândia e Austrália, por exemplo, construíram-se políticas nacionais do que se chama de reconciliação com culturas que foram submetidas ou dizimadas no período de colonização. Isso tem efeitos práticos de uma ordem que não podemos sequer imaginar no Brasil: na Nova Zelândia, de colonização inglesa, a língua e a cultura do povo originário Maori voltaram a todas as escolas do país como conteúdos obrigatórios, foram incorporadas aos ritos cívicos nacionais, nas cerimônias públicas, nos ambientes de trabalho e em todas as esferas sociais. Durante o lockdown neozelandês, os valores comunitários desse povo foram base da campanha educativa oficial, como forma de sensibilizar a população para a necessidade de cooperação e proteção mútua.
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No Brasil, o tema da diversidade na educação inclui o combate ao preconceito de raça e cor, a igualdade de gênero, a liberdade de orientação sexual, entre outras – todas feridas ainda em aberto e à espera de políticas de enfrentamento, reparação, de educação. Em um país cuja matriz nacional é a miscigenação racial, criaram-se ideias mistificadoras do racismo, como a da democracia racial de Gilberto Freyre ou a do brasileiro cordial, injustamente imputada a Sérgio Buarque de Holanda, que disfarçam o imenso desafio civilizatório que o país ainda tem pela frente.
Para o pesquisador André Lázaro, ex-secretário nacional da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC, entre 2007 e 2010, o preconceito e a discriminação na escola estão diretamente relacionados aos mecanismos de exclusão históricos da educação, com raízes na estrutura desigual da sociedade brasileira. “A função atribuída à educação não é inclusiva; é a de escolher os melhores e hierarquizar os fracassos”, afirma Lázaro, hoje diretor da Fundação Santillana.
Nesse processo, em sua visão, os preconceitos acabam servindo como parâmetros desse sistema perverso de seleção. A tendência de culpar o aluno e seu entorno pelo fracasso cria um terreno fértil para que os preconceitos se reproduzam.
“As pessoas que estão à frente da escola são resultado de uma sociedade racista e excludente. A escola, nesse contexto, serve de instrumento da sociedade para acolher, num primeiro momento, para em seguida excluir, responsabilizando o aluno”, explica Lázaro.
Na análise de Lázaro, esse processo de exclusão se dá principalmente em relação à questão racial. “Enquanto as mulheres tiveram acesso crescente à educação da década de 1970 para cá, o mesmo não aconteceu com a população de cor preta, evidenciando que o racismo é mais estrutural e de difícil combate que outros”, acredita.
Embora os marcos legais tenham avançado, ainda é precário o compromisso das instituições formadoras e das escolas. As faculdades de pedagogia, por exemplo, não incorporaram a formação em história afro-brasileira como obrigatória de seus currículos. “As instituições, inclusive as públicas, não têm uma agenda antirracista na sua grade obrigatória”, destaca.
O tema vem ganhando proporções cada vez maiores, em especial alimentadas por protestos globais contra a violência policial, a partir da morte de George Floyd, nos Estados, Unidos, bem como casos mais recentes acontecidos no Brasil.
Mas, não seria necessária a ocorrência de mortes brutais: os dados estatísticos já mostram toda a violência envolvida nas diferenças baseadas em raça.
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Segundo dados do Anuário Brasileiro da Educação Básica 2020, lançado em junho, enquanto 86,6% dos jovens de 16 anos brancos concluem o ensino fundamental, o mesmo ocorre para 69,4% dos pretos e 74,7% dos pardos. Embora as taxas de desigualdade venham decrescendo, isso ainda acontece de forma lenta.
Os dados são mais dramáticos quando se mede a aprendizagem. Enquanto 70% das crianças brancas aprendem pelo menos o nível adequado em língua portuguesa, no ensino fundamental 2, apenas 41,4% dos alunos pretos atingem o mesmo patamar. Da mesma forma, no outro extremo, o rendimento dos jovens brancos em matemática é quatro vezes superior ao dos jovens de cor preta, no ensino médio.
O resultado, como seria de se esperar, é o predomínio de jovens brancos também na universidade, perpetuando o ciclo da falta de oportunidades. Entre os jovens com idade entre 18 e 24 no ensino superior, há 29,8% de brancos, 16,1% de pardos e 16,6% de pretos, mesmo após o advento de políticas afirmativas, como as cotas raciais.
Se os dados falam por si, as escolas pouco mudam para dar visibilidade às questões raciais. Para a pedagoga Clélia Rosa, mestre em Educação pela Unicamp, é uma marca dolorosa para as pessoas negras terem sofrido ofensas e preconceito na infância e, ao procurar apoio das pessoas da escola, ouviram apenas “não liga”, “deixa pra lá”. “Eu e a maioria das pessoas negras da minha geração passamos a infância ouvindo os professores pedindo para pintar figuras com lápis ‘cor da pele’, que certamente não eram da cor das peles negras”, lembra Clélia. Ela pesquisa relações de gênero e raça na educação escolar e familiar, e atua na formação de professores para a implementação da lei 10.639, de 2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileiros nas escolas do Brasil.
Para ela, mudar esse estado de coisas requer uma nova mentalidade. “Para ter práticas antirracistas, é preciso ter um pensamento antirracista, me abastecer de conteúdos que tragam esse referencial. O mundo não é só cristão, europeu e masculino. Há uma urgência em sair da visão única e ir para o plural”, afirmou, em uma live recente para o jornal Folha de São Paulo. Nesse sentido, ela destaca que a inclusão seja efetiva e faça parte do cotidiano, é fundamental mexer em questões mais profundas e estruturais, como os currículos.
O trabalho realizado nos territórios quilombolas é um exemplo do que isso pode representar. É o que busca a Escola Municipal Quilombola Águas do Velho Chico, da aluna Maria Elenilza, citada no início desta reportagem. A escola foi criada em 2016 no território quilombola do município de Orocó, Pernambuco, mas a luta começou dez anos antes. A escola aguarda a aprovação das diretrizes para a educação quilombola no município de Orocó. “A pior discriminação é a discriminação institucional”, afirma a gestora Jacielma da Silva Santos, que comemora ter passado a fazer parte da Rede de Escolas Associadas da Unesco no ano passado.
“A escola fortalece a comunidade e aumenta o orgulho de todos pela cultura”, conta.
Jacielma conta que, enquanto ainda precisavam frequentar as aulas em Orocó, as crianças e jovens quilombolas sofriam preconceitos e não tinham características de sua cultura respeitadas. “O calendário não permitia que participassem das atividades do território”, exemplifica.
Uma das prioridades da Velho Chico é a valorização das tradições da comunidade. “Mudamos nosso calendário escolar para incluir as festas dos padroeiros de cada uma das comunidades, por exemplo. E tiramos feriados que não têm tanta importância para nós, para não reduzir o total de dias letivos previstos”, lembra. Além disso, moradores mais velhos vão à escola contar a história do território e a cultura quilombola passou a fazer cada vez mais parte do currículo.
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O passivo da escravidão que ainda pesa sobre a população afrodescendente muitas vezes nos faz esquecer de que a conta deixada pela exploração colonial começou antes, com os povos originários indígenas.
No livro O povo brasileiro, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) estimou existirem perto de 5 milhões de indígenas à época da chegada dos portugueses. Estimativas mais conservadoras, como a tomada como referência pelo IBGE, no estudo Brasil: 500 anos de povoamento, admitem 2,5 milhões como cifra provável. Depois de um declínio abrupto e constante, que levou a um contingente de 70 mil indígenas na década de 1960, hoje o número se recupera e, no Censo de 2010, chegava à casa de 818 mil pessoas.
Não se trata apenas de uma questão populacional: etnias, línguas, histórias, culturas extintas entram no balanço como perdas irreparáveis. Segundo o Atlas das Línguas em Perigo, publicado pela Unesco e marco para o Ano Internacional das Línguas Indígenas, em 2019, dois terços das 274 línguas indígenas ainda faladas no Brasil podem desaparecer. Por volta dos anos 1500, estima-se que se falavam no Brasil mais de 1.000 diferentes línguas. Certamente, a escola tem um papel a desempenhar nesse campo, seja por meio das 3.371 instituições de ensino voltadas para a população indígena seja em todas as demais escolas brasileiras.
Trabalhar com a língua de seus antepassados é uma das preocupações constantes do Colégio Estadual Indígena Coroa Vermelha, na Bahia. Para Adil Santos Moreira, coordenadora da escola, o desaparecimento da língua indígena equivale a tirar a identidade do próprio indígena. “Por isso, estimulamos seu uso constante nas aulas, poesias, músicas, histórias”, conta.
Segundo o escritor, educador e filósofo indígena Daniel Munduruku, o desafio da diversidade significa resgatar nas crianças o sentimento de pertencimento e autoestima de ser brasileiro. “Há uma desvalorização dos povos negro e indígena: o brasileiro não gosta do que vê quando olha para o passado. Além disso, há uma supervalorização da cultura europeia que compõe nossos povos”, acredita. Para ele, a recuperação das tradições da língua, da culinária, da dança, das histórias, vai estimular todos os alunos a perceberem a importância de sermos um país diverso e múltiplo.
No caso da educação indígena, os marcos legais também avançaram, especialmente a partir da Constituição de 1988. Na década de 1990, a diversidade étnico-cultural começou a fazer parte da formação de professores, com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). A partir daí, as diretrizes do Conselho Nacional de Educação (CNE) incorporam o respeito à diversidade como princípio fundante da educação brasileira.
Para Rita Gomes do Nascimento, indígena do povo Potiguara que foi diretora de Políticas de Educação do Campo, Indígenas e para as Relações Étnico-Raciais do MEC e do Conselho Nacional de Educação, o tema da valorização da diversidade na educação vem conquistando espaço. “Historicamente, a educação brasileira sempre foi homogeneizante. O objetivo era tornar todo mundo igual, ou melhor, parte de uma suposta igualdade que não condiz com nossa realidade, de sociedade diversa e plural”, explica. A partir do momento em que a valorização das diferenças começa a fazer parte das políticas públicas, destaca, acontecem avanços significativos.
Rita integra o Conselho Estadual de Educação do Ceará e desenvolve pesquisas na área de educação indígena. Na sua visão, a escola tanto pode ser reprodutora das desigualdades e das formas de preconceito existentes como também pode atuar em sentido inverso. “A escola tem um papel importante na construção de estratégias de enfrentamento da discriminação e dos preconceitos que acabam potencializando as desigualdades. A diversidade é um direito do aluno”, diz.
A educação indígena não escapa de um universo de intensas contradições. Rita explica que a escola, naturalmente, é uma instituição exótica no universo das culturas indígenas. Quando a escola chegou aos povos indígenas, seu objetivo inicial era o da assimilação cultural, ou seja, para integrar e nacionalizar. Mas, lembra, a partir da década de 1980, o movimento indígena se mobilizou para se apropriar da escola, com a criação de unidades próprias dos territórios e material didático específico. “Quando as crianças das comunidades indígenas precisam ir para escolas fora do território não têm direito a sua identidade étnica”, diz.
Outra parte fundamental da equação que leva a uma maior diversidade é a formação dos professores.
“Precisamos transformar o olhar dos próprios professores, que são os responsáveis pela educação dos alunos”, alerta Munduruku.
Na maioria das faculdades, os futuros docentes são privados de conhecimento sobre os diferentes segmentos e grupos sociais que compõem a sociedade brasileira. “E o desconhecimento causa preconceito”, afirma Rita. Porém, apesar do predomínio de currículos eurocentrados e do paradigma da homogeneização, ela destaca que há experiências inovadoras que precisam ser mais valorizadas e disseminadas.
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A questão quilombola e da cultura afrodescendente e a educação indígena são dois exemplos extremos, mas que não esgotam os desafios da valorização da diversidade como um direito das novas gerações. Fazem parte do mesmo campo de reflexões os preconceitos religiosos, socioeconômicos, intergeracionais, de gênero e de opção sexual. Estão entranhados nos procedimentos pedagógicos, nas normas de convívio e se revelam na definição dos vestiários e lavatórios divididos por gênero, na falta de acessibilidade, no bullying e em todos os aspectos da vida escolar. Enfrentá-los, na visão de André Lázaro, é um passo necessário para o próprio fortalecimento da democracia, pois há riscos reais de retrocesso.
Embora muitos grupos de pesquisa venham se debruçando sobre as faces do preconceito, que são múltiplas, poucos são os estudos ainda que dão um retrato global das dificuldades das escolas brasileiras nesse campo. Um dos mais citados é o realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), em 2009, por encomenda do MEC, denominado Projeto de estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar, organizadas de acordo com áreas temáticas, a saber étnico-racial, gênero, geracional, territorial, necessidades especiais, socioeconômica e sexual.
Ouvindo alunos, professores, funcionários, diretores, pais e mães de 500 escolas em todo o país, a pesquisa traçou um retrato detalhado, em mais de 350 páginas. A análise dos resultados da pesquisa revelou que o preconceito é uma realidade nas escolas brasileiras nas sete áreas estudadas. Aquelas com maior percentual de concordância com as atitudes discriminatórias situaram-se no campo do gênero (38,2%), geracional (37,9%), pessoas com deficiência (32,4%), identidade de gênero (26,1%), socioeconômica (25,1%), étnico-racial (22,9%) e territorial (20,6%).
Da mesma forma, o estudo mediu a distância social autoestabelecida entre os entrevistados e os grupos estudados. O distanciamento manifestado em relação a pessoas homoafetivas foi a que apresentou maior índice (72%), seguido da distância em relação a pessoas com deficiência mental, ciganos, pessoas com deficiência física, indígenas, moradores de periferia e favelas, pessoas pobres, moradores de áreas rurais e negros – em todos os casos, atitude manifestada por mais de 50% dos entrevistados.
O estudo da Fipe evidencia que os alunos das escolas públicas não apenas têm atitudes e comportamentos discriminatórios, mas sofrem os efeitos de comportamentos similares de outros atores do ambiente escolar, como diretores, professores e funcionários.
A dicotomia entre atitudes e distância social mostra que as pessoas tendem a não assumir que são preconceituosas e que discriminam pessoas pertencentes a outros grupos sociais aos quais não pertencem. Este ambiente escolar, marcado pelo preconceito, termina por resultar em práticas como humilhação, agressão e perseguição que não afetam somente os alunos, mas a toda a comunidade escolar.
Na última década, muitas políticas de enfrentamento do preconceito e da valorização da diversidade foram iniciadas, em municípios, estados e no âmbito do Ministério da Educação. Mas, agora, há um grande temor entre os ativistas da área de um retrocesso.
“A pandemia se tornou uma espécie de hora da verdade, pois medidas concretas e efetivas precisarão ser tomadas para combater as desigualdades. A prova dos nove é agora. Para além dos discursos, quais as políticas que serão adotadas para impedir que a pandemia cause um desastre, excluindo ainda mais a população pobre da escola brasileira? Não é fazer mais do mesmo. Precisamos de medidas diferentes, pois o desafio é enorme”, afirma Lázaro.
*Esta matéria sobre diversidade como direito foi capa da edição 269 da revista Educação, em agosto de 2020